Muquifu em ritmo e poesia
por Carina Martins
Você conhece um museu que guarda as memórias dos quilombos e favelas?”, questiona o rap de Mota Júnior (Feijão), enquanto imagens de objetos, fotografias e pessoas formam um rico, acelerado e colorido painel em meio a paredes cinzentas com alguns tijolos crus. Vejo mulheres negras em murais e releituras de pinturas famosas. Redes de fios que conectam memórias. Bonecas negras, capacetes de obra, ferros de passar. Os olhos ficam vidrados, à procura do detalhe, da legenda, do gesto, da próxima cena.
A cadência da música cria vertigem e curiosidade, afinal, o que é tão diferente no Muquifu, um museu localizado no Morro do Papagaio, em Belo Horizonte, Minas Gerais? “Não conhece, então te convido a visitar”, por enquanto, na pandemia, pelo documentário produzido pelas Profas. Lana Siman e Ana Paula Malleta com seus estudantes da disciplina “Tópicos especiais em Educação”, do mestrado em Educação da Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG).
O vídeo intitulado “A museologia social do MUQUIFU” foi organizado em alguns eixos, a saber, a história do Museu e sua função social; objetos significativos pelos olhares de depoentes; função pedagógica e decolonialidade. Os depoentes são pessoas ligadas à equipe do Museu, pesquisadores e também uma moradora que havia entrado pela primeira vez, surpresa instantânea capturada com sensibilidade pela equipe. Um ponto alto do documentário ouvir Ethielle Gonçalves, mulher negra, favelada, ex-moradora da Vila Estrela, falar várias vezes a palavra “respeito” e “reconhecimento”. Memórias de suas avós estavam na exposição e ela não sabia, a descoberta enseja um desejo de fala, capturado pelas lentes da equipe de produção. Ela conta que uma das avós sofre com Alzheimer e por ser rainha de congado foi homenageada. Me faz pensar no cruel apagamento das memórias negras, esse Alzheimer provocado por um racismo estrutural bruto, doença que tem cura, ao contrário da de Dona Marta. Me faz refletir sobre a potência do MUQUIFU ao trazer as empregadas domésticas, os pedreiros, as crianças que trabalham, as artesãs para o centro do processo terapêutico que é lembrar, narrar, projetar saberes e memórias para outras temporalidades e culturas. Ser visto, reconhecido, respeitado, ouvido. Ser agente, promotor, interlocutor, criador.
Aliás, o protagonismo das mulheres negras é onipresente em todo museu e também na Igreja das Santas Pretas, contígua ao MUQUIFU, com seus imensos painéis que desvelam suas lutas e resistências. E, sim, Cristo lá é negro, como já devem ter imaginado. O artista Cleiton Gos, responsável por essas obras, narra essas 14 mulheres que indiciam tantas e tantas outras, com protagonismo nas favelas e comunidades.
Entremeados aos ricos depoimentos, que não ousamos antecipar, as pesquisadoras se transformam em escutadoras. É bonito de ver seus “uhms” confirmativos, os sentidos abertos para a fala do outro, coração conectado com a força da palavra, de fazer o dito reverberar. Alinhamento à museologia social de Padre Mauro que diz sobre a importância de escutar os atores no projeto do museu. A Universidade produzindo encontros, pontes, descobertas. Interessante nesse sentido as questões de Alexsandro Trigger sobre o conhecimento preto na universidade e a importância dos professores para saber que sabia, sem saber o nome. Tudo muito tocante e costurado com maestria pela edição.
As potentes falas são capturadas pela câmera com clareza e centralidade ao falante, emolduradas por sutilezas como um pisca-pisca faiscando no altar, as fitas coloridas de uma congada ou um quintal convidativo. A sensação de surpresa e é presente, como também o é a de aconchego. Afinal, como afirma o rap, “é um museu diferente, construído pelas mãos de pessoas conscientes”.
No início do documentário, vejo a câmera capturar uma etiqueta. A fotografia acima é de um homem na janela. Evoca imediatamente em mim a pandemia, nossos corpos em casa e a janela como um portal entre um mundo que já não conhecemos ou habitamos da mesma forma. Mas não é esse o flagra do fotógrafo. Volto o vídeo, leio a legenda e me emociono. “O colecionador- Sebastião Messias. A imagem revela um homem que acumula gaiolas sem pássaros e objetos que algum dia podem ter serventia. Para ele, que tem uma perna amputada, nada nem ninguém é inválido”. Suspiro, soco no estômago. Não vi esse homem, vi as projeções de minha mente, vi meu mundo, minhas questões. Re-olho. Re-lembro. Res-significo.
Também re-vejo a lâmpada mágica. Um objeto vermelho que me fascina pelas histórias infantis. Quem não se emociona ao saber que foi doado por uma menina à busca de seus irmãos, separados na infância, com a esperança de que o brinquedo comum conectasse novamente à sua família?
O documentário vale por cada história, por cada depoimento. Pelas bonecas generosas, pelas palavras inspiradoras, pelos lampejos da exposição, pela oportunidade de conhecer um pouco melhor das pessoas e seus saberes.
Finalizo com um reconhecimento do trabalho das professoras Lana e Ana Paula que acreditam e fazem acontecer a formação continuada como espaço de investigação, imersão, produção e reflexão. E de todas e todos que participaram do documentário, uma costura imagética e enunciativa com linhas de afeto e resistência que reforçam a importância do educar por meio da memória.
E volto ao rap, sempre certeiro, ao apontar o MUQUIFU como “um exemplo a se espelhar tem o intuito de instruir, desvelar e educar”. Parabéns a todas/os envolvidas/os!
ACESSO AO DOCUMENTÁRIO
FICHA TÉCNICA Gênero: Documentário Nacionalidade: Brasil Ano: 2019 Direção: Pedro Fernandino Ogando Roteiro: Alexsandra Moreira de Castro, Ana Paula Braz Maletta, Débora Barbosa Alves, Esther Aparecida Barbosa Alves, Fernando Dias da Silva Mota Júnior, Isabela Rodrigues Ligeiro, Jonathan Alkmim Costa, Maria de Lourdes Lotério da Cunha de Paula, Mauro Pena de Faria Júnior, Lana Mara de Castro Siman, Lívian Aparecida Corsi Machado, Paola Reis Almeida, Pedro Fernandino Ogando, Rosangela Guerra de Andrade e Thelma Yanagisawa Shimomura. Música: Fernando Dias da Silva Mota Júnior Montagem e finalização: Pedro Fernandino Ogando Entrevistados: Pe Mauro Silva – Diretor e Curador do MUQUIFU; graduado em Museologia pela Universidade Pádua, Itália; doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas). Cleiton Gos – Artista plástico; pintou cenas iconográficas e murais da Igreja das Santas Pretas (Comunidade da Paróquia Nossa Senhora do Morro), em parceria com Maciel Ávila; é coordenador Educativo do MUQUIFU. Alexsandro Trigger – Artista plástico; estudante do curso de Museologia da UFMG; participante Coletivo MUQUIFU; morador do Morro do Papagaio. Jezulino Lúcio Mendes Braga – Mestre em História e Doutor em Educação pela UFMG; professor do Curso de Museologia da UFMG. Ethiele Gonçalves – Ex-moradora da Vila Estrela, uma das vilas do Morro do Papagaio. Produção: Laboratório de Produção Audiovisual para Pesquisa e Ensino em Educação (PROAVI) da Universidade do Estado de Minas Gerais. FONTE: http://www.ppgeduc.uemg.br/a-museologia-social-do-muquifu/
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