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As labaredas que nos queimam (I)

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Carina Martins Costa

Dia 2 de setembro de 2018. Ainda estou chamuscada. Lembro de ver na televisão as primeiras notícias do incêndio no Museu Nacional. Meu whatsApp não parava de receber mensagens: colegas, alunos, familiares. Lamentos, revoltas, perguntas, choros. Eu me lembro de uma aluna ter gravado, aos prantos: é como se tivesse perdido alguém da minha família. Eu logo pensei – é isso, mas é mais que isso, toda nossa árvore genealógica desabando em serpentinas de fogo.

Atônita, procurava informações sobre os bombeiros, calculando a rapidez das chamas a partir das coleções que conhecia. Cada objeto lembrado, cada documento, cada livro me fazia chorar. Na imprensa, depoimentos ao vivo sobre a importância do acervo, o Brasil parecia não entender o que perdia. E as perguntas circulavam sobre o valor: quanto perdemos?

Uma noite sem dormir, uma banca no dia seguinte sobre museus. Cara inchada, encontrei naquele momento colegas que compartilhavam a mesma dor – Lana Siman e Rita Oliveira da UEMG- e me acolheram com sua sensibilidade.

Pesquisei muitos meses no arquivo institucional do Museu Nacional. Era difícil pois ainda morava em Juiz de Fora. Lembro do extremo calor da sala, sem nenhuma climatização. Era um gigantesco repositório de experiências pedagógicas pioneiras. Recentemente, retornei ao MN para cursar uma disciplina de Antropologia da Arte com o Prof. Carlos Fausto e Prof. Thiago Oliveira, foram tardes de muito aprendizado e inspiração. Como visitante, inúmeras vezes me perdi em suas galerias. Acho que foi também o primeiro museu que fui ao Rio. Impressionava-me a deterioração de parte da exposição, com cartolinas e outras medidas toscas, em contraste com outras seções. Havia, claro, ali, uma disputa por ciências, imagino que agravada por sua incorporação na estrutura da UFRJ. Como professora da UERJ, muitas atividades foram desenvolvidas no Museu pelos meus alunos. Era um lugar afetivo para a maior parte deles, muitas experiências vividas ali, sobretudo a de pertencimento. “Perdi alguém da minha família”.

Bárbarie. Despreparo. Desfinanciamento. Ignorância. Era um misto de revolta e incompreensão pela altura das chamas, pela precariedade, pelas falas ocas dos comentaristas, pela impotência em ver nosso patrimônio arder sem resistência. Para amenizar meus sentimentos, criei uma aula pública intitulada “As labaredas que nos queimam” no dia 11/9, mesmo dia em que a gestão Temer apresentou a proposta da extinção do IBRAM e criação da ABRAM, vendo visto nesse episódio “uma janela de oportunidades” para acentuar o desmonte de políticas públicas para cultura, educação e patrimônio no Brasil. Vamos à síntese da aula.

(crédito: Tânia Rego/Agência Brasil)
(crédito: Tânia Rego/Agência Brasil)

O que queima quando queima um museu? Essa pergunta foi mote da aula pública.

Queimam objetos? Queimam papéis e livros? Queimam memórias? Queimam prédios? Soubemos rapidamente que nenhum ser humano foi atingido pela tragédia no Museu Nacional. Será?

Dia 11/9 é marcado por outros incêndios. Em 1972, o Palácio da Moeda ardia após o bombardeio militar, que culminou na morte do presidente Allende e a instalação de uma ditadura. Em 2001, as Torres Gêmeas, símbolos do capitalismo em Nova York, foram atingidas por aviões e tombaram incendiadas. Imagens de fogo que impactaram a história, marcando a destruição de ciclos. E hoje, juntos, pensaremos em mais uma grande labareda, que não destruiu símbolos de poder ou do capital, mas sim do patrimônio de nosso planeta, não só da humanidade, vejam bem. Ali tínhamos registros geológicos e paleontológicos, coleções de Mineralogia, Zoologia, Entomologia…Perdemos esses registros que projetavam nosso olhar para um passado longínquo, como para futuros a serem criados.

Vou dividir essa fala em três momentos: luzes, fogos e contrafogos. Comecemos pelas luzes. São faróis para iluminar esse debate. Quais são os sentidos de um museu no contemporâneo, onde tudo é tão fugaz, descartável? Funcionarão como âncoras de nossa memória? O debate é complexo, mas podemos destacar a busca incessante, por parte de profissionais engajados, na demarcação da função social dos museus. Eles devem servir como fóruns, plataformas de perguntas, cenários para visibilização de outros passados e, portanto, outros futuros. Um museu não é o prédio, não é a coleção, não é o que vemos. Museus são instituições muito complexas que acumulam saberes, fazeres, sentimentos. As reservas, bibliotecas, arquivos e laboratórios são fontes inesgotáveis de produção científica, de encontro com memórias, de descobertas e de ressignificações. Os museus não são neutros e sua própria historicidade nos leva a pensar sobre escolhas, métodos, paradigmas científicos, relação com a comunidade, representação de culturas, dentre outros elementos. Os museus preservam sementes de futuros esquecidos, ou seja, projetos derrotados ou silenciados, que podem irromper em outras temporalidades com sua força e potência. Guardam nossa ancestralidade, que pode ser acionada de formas imprevistas. São luzes, embora, claro, tenham muitas sombras.

Fogos. Muitas labaredas. Impressiona a altura que chegam, a velocidade, a intensidade. Quais foram os fósforos? Os detonadores dessa destruição? Podemos pensar em falhas mecânicas e humanas. Sim, houve alguma fagulha. Mas e o fogo? O que explica o fogo? O Museu não tinha projeto de segurança? Portas corta-fogo? Por que os hidrantes estavam vazios? Quanto tempo demorou para jogar água? Não havia um plano e treinamento para evacuar rapidamente as coleções? São tantas perguntas. Alguns indícios. O primeiro tem a ver com o profundo desfinanciamento que o Museu Nacional vinha enfrentando. Há o desprestígio político: ao comemorar seu bicentenário, nem o presidente nem qualquer ministro de estado compareceu. O que nos faz pensar sobre o lugar da arte, cultura e educação no cenário de aprofundamento do neoliberalismo conservador no Brasil. Para esses governantes, cultura é descartável, desprezível. “O que eu posso fazer agora que queimou” ou “vamos remontar esse museu da forma como era, ainda melhor” foram palavras que escutamos, atônitas, na semana do incêndio. Uma profunda ignorância sobre o que era o Museu Nacional.

O fogo é símbolo de transmutação. A antropóloga Aparecida Vilaça evocou a ideia de imolação dos objetos, alguém colocando fogo em seu próprio corpo em protesto ou revolta. Diante de tanta bárbarie, o que nos resta com as cinzas do MN?

Contrafogos. Como pensar resistências a um profundo processo de desmonte do patrimônio nacional? Bordieu, na década de 1970, propunha táticas para o enfrentamento da política neoliberal. O caminho por ele apontado, naquele momento, era a construção de uma nova ordem social voltada aos interesses coletivos e à manutenção de um Estado “supranacional”, que controlasse os lucros realizados nos mercados financeiros. Em relação aos museus, o que poderíamos apontar? Em primeiro lugar, a defesa por seu caráter público e estatal, autônomo em relação às pressões de mandatos. Que acionemos sua potência, que ocupemos seus espaços, que disputemos seus discursos. Que investiguemos suas coleções, que promovamos encontros entre saberes, que eduquemos para a ativação de múltiplas memórias. Que divulguemos para toda população seu acervo, suas pesquisas, seus saberes. Que exerçamos diálogos produtivos e construamos, coletivamente, intervenções, transformações, acomodações, intersecções entre Museu e sociedade, nas dobras dos tempos, na projeção de futuros mais auspiciosos para as Humanidades.

Por fim, o debate posto: o Museu Nacional ainda vive? Ou morreu? De um lado, alguns pesquisadores vão apontar a importância do luto. Penso que aquele projeto de Museu, com base no colecionismo do século XIX, que envolveu coleta e documentação por cientistas europeus e brasileiros em uma perspectiva evolucionista e extrativista, por assim dizer, morreu e não deve ser ressuscitado. As coleções frutos dessas expedições e investimentos sucumbiram e não existem esforços capazes de repô-las: ou porque não existem mais os atores que os fizeram, ou porque não existem mais materiais, ou porque não é o modelo de ciência que defendemos. Isso sem falar dos modelos-tipo e das séries de espécimes que eram mobilizadas para montar narrativas genéticas. A coleção de línguas indígenas, gravadas por gerações de pesquisadores/as, se perdeu totalmente. Mário Chagas foi enfático: “O Museu Nacional morreu! O que devemos para as próximas gerações é o registro honesto do fracasso! O Museu Nacional morreu e foi queimado e assassinado em praça pública, diante dos meios de comunicação! Sou inteiramente contra a tentativa de ressuscitar o morto carbonizado. Que se crie um outro Museu, mas que se respeite a morte do Museu Nacional. O Museu Nacional morreu!”. Por outro lado, sem desconsiderar o tamanho da perda, criou-se a campanha “Museu Nacional vive”, em busca da reconstrução e da mobilização em prol do resgate de parte do acervo. A antropóloga Regina Abreu sublinhou a importância da luta: “Reconstrução Já! Vamos fazer um Inventário das Memórias do Museu, fazer doações para a Biblioteca Francisca Keller, re-imaginar um novo Museu Nacional potente, lindo, que continue maravilhando as novas gerações e que recupere a nossa auto-estima como nação”.

As labaredas que nos queimam. É a humanidade que perde acessos a suas memórias mais ancestrais. Dói saber, no caso particular da História, que ali estavam a ser descobertos, por meio de novos olhares e paradigmas, outras formas de interpretar os passados indígenas e africanos. Dói saber que grande parte da coleção era desconhecida. Dói a alma, o corpo, a cabeça. Dói saber que nem pudemos fazer o luto: a polícia jogou bombas de gás no dia seguinte nas pessoas que foram se despedir do Museu. Tudo dói e essa ferida ainda está longe de fechar.

A imagem do meteorito de Bendegó nos interpela. Afinal, sobreviverá apenas o inumano?

 

 

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https://aosfatos.org/noticias/relatos-de-falta-de-verba-e-abandono-do-museu-nacional-remontam-decada-de-1950/ 
https://aosfatos.org/noticias/relatos-de-falta-de-verba-e-abandono-do-museu-nacional-remontam-decada-de-1950/


Depoimento da antropóloga Aparecida Vilaça: Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2018/Um-museu-em-chamas-visto-por-uma-de-suas-antrop%C3%B3logas

Depoimento do poeta e museólogo Mário Chagas: Facebook, 3/9/ 2018. Acesso: ttps://www.facebook.com/mario.desouzachagas/posts/1906426262783666

Depoimento da antropóloga Regina Abreu: Facebook, 4/9/2018. Acesso: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10217219343859428&set=a.10202653131313218&type=3 [cite]