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‘Um Brasil que precisa nascer’: sobre os patrimônios sentidos nos arquivos informais digitais

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por Marcella Albaine e Danilo Mendonça

“Há um Brasil que não sabe mas está morrendo e um Brasil que precisa nascer”, assim escreveu a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz em sua rede social no dia 26 de julho de 2021, quando da medalha de prata da jovem skatista Rayssa Leal nos Jogos Olímpicos de Tóquio.

A colocação de Lilia serve-nos de embasamento para questionarmos: que Brasil é esse que está morrendo? Que Brasis são esses que urgem e merecem nascer? A poeta e historiadora Danielle Magalhães comenta sobre a reescrita da História, da vida que insiste e sobrevive ‘apesar de’ – em diálogo com Aristóteles, pondera que os/as historiadores/as narram os fatos acontecidos, enquanto os/as poetas versam sobre aquilo que poderia acontecer de acordo com a verossimilhança. É um pouco sobre o historiar a partir do poetizar que esse texto caminha, investindo na compreensão do sentir nos estudos patrimoniais.

Não têm sido poucas as notícias das últimas semanas sobre os desmontes no âmbito da cultura. O fogo destruidor na Cinemateca de São Paulo (SP) e o ataque racista ao Memorial Nossos Passos Vêm de Longe em Duque de Caxias (RJ) são apenas alguns exemplos, entre tantos, em todo país, que têm em comum a ignorância como bandeira política. O nosso foco, porém, vai no sentido de pensar formas concretas de resistência, de combater a opressão por meio do conhecimento histórico e da criatividade.

É nesse ínterim que propusemos a organização de um arquivo informal digital, ainda em processo de publicização, cujo conteúdo é composto por notícias sobre Educação e Patrimônio no contexto da COVID-19, contexto esse extremamente sensível em que a vida humana, nosso maior patrimônio, foi colocada à prova, explicitando a nossa vulnerabilidade no existir.

Longe de explorá-lo na sua integralidade no recorte deste texto, gostaríamos de partilhar, nessa ocasião, um olhar breve sobre as pautas de algumas dessas matérias, entendendo-as como fontes históricas, e como essa empiria nos afeta, para, futuramente, pensar sua mobilização em situações de ensino e aprendizagem, seja na educação básica ou na formação de professores. Composta no total por 158 notícias (119 de Educação e 39 de Patrimônio), de diferentes portais informativos, consideramos importante dizer que o referido acervo foi formulado no âmbito de uma pesquisa de pós-doutoramento em Educação na UFRGS, realizada em parceria com o Centro de Humanidades Digitais da UNICAMP, o que evidencia a potência e a riqueza das investigações em rede para melhor análise de dados e proposições. No momento, vamos focar apenas no que diz respeito à parte de Patrimônio.

Com a chegada do novo coronavírus, a vida tornou-se diferente. Por uma série de medidas impostas pela disseminação da doença estabeleceram-se diversas mudanças entre o indivíduo e o bem público. Bibliotecas, arquivos, centros culturais, museus, universidades e outros espaços viram-se obrigados a fechar as portas, atendendo às orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Houve, portanto, uma mudança de operação e funcionamento das instituições de cultura e pesquisa, e o patrimônio público também tornou-se parte dos debates gerais durante a pandemia.

A discussão patrimonial chegou a boa parte da imprensa em 2020. Notícias, por exemplo, sobre os protestos às estátuas de figuras escravagistas e colonialistas nos Estados Unidos e na Europa, ações vinculadas ao Black Lives Matter, movimento social organizado após a morte do caminhoneiro e segurança George Floyd em uma abordagem policial excessiva (que levou à sua morte), fizeram parte de debate internacional. No Brasil, matérias que explicitam a interferência do atual Presidente da República no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) – principal órgão federal responsável pela memória do país – também foram pauta nos periódicos online, assim como o questionamento às estátuas em homenagem aos bandeirantes.

Voltamos ao ponto do Brasil que precisa nascer. No próprio processo de construção do acervo sentimos/percebemos as desigualdades no acesso à informação de qualidade em nosso país. Num contexto brasileiro marcado pela disseminação de fake news, a volta da inflação e o desemprego que parece tornar-se crônico, o acesso à informação de qualidade e verificada, sabemos, está longe de ser para todos. Para além da discussão patrimonial em si como conteúdo das notícias, estamos a falar do tratamento dado à memória como um ‘patrimônio público da humanidade’.

Com as etapas de catalogação e armazenamento realizadas, percebe-se que esse arquivo informal digital, criado com o objetivo de ser público e, assim que possível, retroalimentado em um sistema colaborativo com professores/as e pesquisadores/as que dele venham a se apropriar, é extremamente potente por instigar uma série de investigações. A pergunta que ficou no ar, todavia, foi como essa experiência de montagem e organização do acervo nos tocou – portanto, com a expressão patrimônio sentido utilizada no título queremos demarcar a peculiaridade da nossa imersão nesse arquivo digital com foco patrimonial, fruto daquilo que, para além do factual e do racional que faz parte do fazer pesquisa, pudemos apreender dessa vivência pelo sensível enquanto aprendizes que somos.

Ao ler e navegar por entre várias dessas notícias, estando nós em um contexto histórico de tanto descaso, o nosso sentimento primeiro foi de desânimo profundo, de constatação do quanto a cultura e o patrimônio cultural têm sofrido. Somente um olhar pausado, criterioso e, em grande medida, aberto ao porvir, permite-nos apreender as brechas, as possíveis estratégias de combate, e elas, sem dúvidas, serão de cada um/a que do material se apropriar para pensar suas propostas didáticas.

Temos pensado as nossas propostas didáticas para trabalhar esse acervo a partir do que temos visto nas ruas e nas redes. O historiador Luiz Antonio Simas nos lembra que ‘é preciso fazer o Brasil dar errado’: o projeto excludente de Brasil, de superioridade de poucos baseada na opressão de muitos, vai dando lugar a narrativas outras, de vozes múltiplas e de cores várias, de quem por muito tempo esteve à margem. O Brasil que precisa nascer, na realidade, já está aí. Será que temos olhos de ver e coração de sentir?

Ele está no balé na favela, no batuque em ensaio aberto no parque, no quadro pintado pelo artista no chão de uma rua movimentada no centro da cidade, nas poéticas de mulheres de periferia que chegam aos espaços formais de exposição, em síntese, nas várias batalhas travadas nas ruas que misturam ritmo e poesia – por isso no início do texto falamos do historiar a partir do poetizar, pois o poetizar é ensaiar a linguagem do ‘vir a ser’.

Há iniciativas, muitas vezes, que não sabemos o nome de quem as realiza, mas que estão longe de serem anônimas: são feitas por sujeitos com nome e fibra que, da forma que podem e conseguem, resistem e persistem no objetivo de não deixar a cultura e o patrimônio cultural morrerem, mesmo nesse contexto denso de pandemia. Que possamos conhecer essas iniciativas e dar visibilidade às mesmas por meio de nossas redes sociais, divulgando e apoiando projetos que efetivamente valorizem as diferentes manifestações de pulsão de vida em forma de cultura. Esse “é o dever que nós trouxemos para fazer em casa”, diria Mario Quintana.

Texto dedicado à Dona Maria, Isaura, Ricardo, Fabiano, Simone, Gabriel, Yasmim, Selma, Antônio, Isis e tantos corações que nos ensinaram a força das ruas para o exercício da intelectualidade como arte. Nosso agradecimento à Profa. Marizete Lucini pelas conversas e referências que instigaram a escrita desse texto e às Profas. Carmem Gil e Eliana Dias pela leitura crítica.

Para saber mais

Para elaboração do acervo usamos o Drive, produto de serviço de armazenamento em nuvem vinculado ao Google, onde arquivamos diversas notícias de portais como G1, Brasil de Fato, UOL, Veja, Época, Folha de São Paulo, Istoé, O Globo, Diário do Nordeste, Diário de Pernambuco, Estado de Minas, entre outros. Visando gerar a catalogação das notícias, foi criada uma planilha no Sheets, também vinculado ao Google, onde organizamos as suas características gerais: título, data da publicação, autoria, síntese da matéria após a nossa leitura, fonte, link de acesso e a informação se ela era aberta ou exclusiva para assinantes. A base de dados foi um recorte, uma seleção feita manualmente no final de dezembro de 2020 na opção ‘notícias’ do buscador Google a partir das nossas próprias memórias sobre o que aconteceu com o patrimônio ao longo do ano e da utilização das palavras-chaves ‘patrimônio cultural’, ‘Covid-19’, ‘pandemia’ e ‘digital’, o que demonstra, então, que o processo foi induzido não apenas pelas nossas lembranças como também por aquilo que o algoritmo de busca do Google selecionou a partir das palavras-chave que inserimos. Ela foi criada com o propósito de assegurar o direito à memória e à transparência democrática, evidenciando o nosso posicionamento político como pesquisadores/as em prol do acesso à informação. Os assuntos envolviam política e órgãos de conservação, desmonte do patrimônio cultural, reflexões causadas pela derrubada de estátuas no exterior, reinvenção de museus com uso das tecnologias digitais, investimento em exposições virtuais, digitalização de acervos, impacto financeiro causado no setor cultural, entre outros.

MARINO, Ian Kisil; NICODEMO, Thiago Lima; SILVEIRA, Pedro Telles da. Arquivo, memória e Big Data: uma proposta a partir da COVID-19. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão-SE, v. 11, n. 01, p. 90-103, jan./jun. 2020.

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