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O avesso do avesso: caderno Maré de Histórias

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por Carina Martins

Hoje é dia de festa! Lançamento do caderno pedagógico “Maré de Histórias” na UERJ, no youtube UERJ Petrópolis (https://www.youtube.com/watch?v=tSKJs1fg64s), com parte da grande equipe que pensou, sonhou e realizou esse material tão singelo e potente, na Primavera dos Museus.

Tudo começou com um edital da FAPERJ de produção de materiais pedagógicos em 2014. Com as múltiplas crises do Estado e também as minhas de saúde, a luta pela manutenção do Museu da Maré, o extermínio de Marielle Franco e toda a convulsão política dos últimos anos, achamos em alguns momentos que não conseguiríamos fazer.

O tema da pesquisa-ação centrou- se na construção de estratégias pedagógicas para mobilizar saberes, fazeres e afetos no Museu da Maré (Rio de Janeiro- RJ). O Museu da Maré possui uma trajetória significativa, embora recente, na projeção de memórias normalmente desconsideradas no imaginário urbano do Rio de Janeiro. Portanto, o conjunto do material pedagógico buscou amplificar esta proposta cidadã ao propor o estreitamento da relação do Museu com as escolas da cidade, estimulando, em última análise, visibilidade e maior apropriação deste importante equipamento cultural.

E como desatar esses nós e voltar ao processo criativo? Lembro de um livro “A louca da casa”, de Rosa Montero, que recomendo a todos/as que estiverem travados/as na escrita. Ela dizia sobre a baleia que passa e às vezes só vemos o rabo. Que aquele instante fugaz necessita de nossa atenção. E, portanto, um dia vi o rabo, ou parte dele, ou sombra dele, e ficou claro que estava travada na escrita de uma parte sobre a história do Museu porque ela não poderia ser escrita por mim. Ela deveria ser escrita pela equipe de fundadores/as do museu.

Eu já sabia que seria um material polifônico, na acepção de Bakhtin. Ainda assim, exercitar um processo de cocriação envolve muitos deslocamentos e, para isso, o tempo é outro. O prazo está lá, no horizonte de editais e financiamentos, mas também podemos negociar, esticar, alargar. E com isso, o processo fica fluido, garante múltiplos olhares, pausas e refeituras.

O avesso de um processo desse é mais bonito que imaginamos. Foram muitas reuniões e oficinas com professores/as, moradores/as, equipe, bolsistas. Não é exagero pensar em mais de cem pessoas ao longo desses quatro anos. São observações, dúvidas, comentários, críticas e olhares que vão desnorteando, expandindo, colorindo tudo.

Eu amo materiais pedagógicos, cartilhas, livretos, livros para infância. Desde criança guardo esses materiais com carinho e, profissionalmente, hoje são fontes para minhas pesquisas e produções. Acho livros didáticos empobrecedores, no geral. Participei de várias edições do Programa Nacional do Livro Didático como parecerista da área de História e achava tudo enfadonho, e quando animava, eram nas sessões finais dos capítulos, que sabemos que quase ninguém chega. Vi coisas incríveis, claro, mas hoje o mercado editorial está muito homogeneizado, e isso deve piorar com um currículo mínimo comum, uma daquelas burrices pedagógicas que se mascaram como direito à educação.

Por isso mesmo, estes materiais que seduzem para as lições das coisas, para a imaginação e o historiar me são mais caros. E hoje, em plena pandemia, com uma geração hiperconectada e outra desprovida ou precarizada no acesso aos equipamentos culturais digitais, também me aventuro para pensar essas outras linguagens.

Começo pelo fim. O caderno Maré de Histórias é lindo. Foi um projeto gráfico da Lilian Ximenes, que conheci em um tratamento chamado Panchakarma no interior de Minas. Sua sensibilidade com o tema da memória e dos artefatos me trouxe uma intuição que saberia, com sotaque mineiro, sonhar conosco e produzir a narrativa visual original que esperávamos, com as limitações técnicas e financeiras que tínhamos. Lilian costurou a arte de Marcelo Vieira, que um dia apareceu no Museu com vários estênceis sobre o acervo e a memória. Fiquei apaixonada à primeira vista. Ela mesma também criou e entrelaçou imagens, cores e palavras.

Na fase final, os textos chegavam de várias formas. Eram lindos depoimentos da equipe do Museu, trechos achados escritos em outras épocas, o samba-enredo da Mangueira, comentários no caderno de visitantes, proposta de bolsistas da História. E, um dia, a baleia inteira se apresentou e escrevi um texto para visita aos tempos da Maré que veio inteiro.

Mas, havia uma questão: era o primeiro material do Museu e tínhamos muitos materiais e ideias. A gente queria algo que pudesse ser ao mesmo tempo um convite e também um objeto de leitura e brincadeiras, algo afetivo para que as crianças e pré-adolescentes guardassem em casa. Simultaneamente, criamos o jogo do Museu que foi pensado para um uso após a visita, como uma brincadeira provocadora de sínteses e reflexões sobre questões contemporâneas da favela, o território e as memórias da Maré (conto depois, pois lançaremos presencialmente, precisamos dos corpos!).

Tento aqui sintetizar o caminho escolhido para produzir os materiais pedagógicos que envolveram tantos sujeitos, saberes e tecnologias a fim de que o público possa acionar e reverberar toda potência do trabalho pedagógico realizado no Museu da Maré. É difícil. Em um primeiro momento, analisamos o processo de constituição do Museu e seu acervo, bem como as duas exposições permanentes construídas pelo mesmo. As fontes mobilizadas foram as entrevistas, o estudo dos planejamentos expográficos e dos textos expositivos, bem como a realização, dentro do espectro de pesquisa-ação, de oficinas abertas a toda comunidade para pensarmos coletivamente sentidos do Museu, da exposição e de objetos. A partir de então, analisamos as práticas educativas, as visitas guiadas, a relação dos sujeitos, os livros de visitação e outros materiais produzidos pelo e sobre o Museu, com o intuito de subsidiar nossa proposta.

Em um segundo momento, analisamos materiais pedagógicos de diversas instituições museais do Brasil e do mundo a fim de investigar, por exemplo, concepções de ensino-aprendizagem, mobilização das fontes, estratégias didáticas, presença de polifonia, atividades produzidas.

Por fim, em um terceiro momento, se deu a produção do material em processo de cocriação que envolveu toda a equipe do Museu da Maré, como também bolsistas do curso de Arquitetura e Urbanismo da UERJ, de História, de professores e interessados/as em geral.

O material pedagógico foi composto por duas partes principais, a saber, o caderno pedagógico/pranchas de atividade/almanaque e o jogo de tabuleiro gigante, intitulado “Um mar de Histórias”.

O caderno pedagógico “Maré de Histórias”, com 48 páginas, foi organizado em três seções principais: a história do Museu; o caderno de campo para visita ao “Tempo da Casa” e o almanaque. Buscamos contextualizar para o visitante a formação do Museu da Maré e o seu acervo; problematizar a história e a diversidade do local; discutir diferentes memórias; refletir sobre as temporalidades e propor leituras do acervo. Já com as pranchas de atividade objetivamos o desenvolvimento das habilidades de observação, inferência e comparação a partir da visita à exposição.

Por fim, os jogos de almanaque foram produzidos para estimular a ludicidade, sem abrir mão do potencial educativo. Neste sentido, o jogo da memória foi construído tendo por referência o diálogo entre peças de acervo, temporalidades distintas e a dinâmica memória/esquecimento presente em todos os museus.

A tessitura do Caderno envolveu muitas idas e vindas de arquivos e versões. Minha irmã Paula foi a revisora e construiu comigo também a linguagem final. As equipes do Museu e de designer batiam as bolas conosco.

Consegui escrever mais sinteticamente, mas devo finalizar com duas observações pessoais. Lembram do texto produzido quando a baleia apareceu? Foi totalmente retirado do projeto final e só é acessível agora pelo QR-CODE. Explico: optamos por visibilizar as narrativas da própria equipe e deixar acontecer o projeto gráfico. Poucas páginas, poucos recursos e a tecnologia ajudou a ampliar. A angústia da falta é danada de gerenciar.

A segunda observação: o jogo da memória foi inspirado no jogo da minha tia-avó Lenir, que me lembrou tantas tardes de brincadeiras aos domingos. Até o tamanho e os fundos coloridos foram inspirados nesse objeto de memória, que hoje guardo como recordação familiar.

Imagino que estão curiosos/as para conhecer o Caderno, por isso deixo aqui o PDF disponível para livre fruição. Os cinco mil exemplares impressos serão distribuídos para professores/as e estudantes do 6º ano das escolas da Maré. Esperamos uma nova edição para que essa maré de histórias inunde toda cidade e, por que não, também o Brasil? E esse bordado continua, com a produção do caderno para e com os professores/as. Aguardem!

Finalizo agradecendo a todas as pessoas que participaram desse projeto. Especialmente, à amiga Claudia Rose, presente do meu mestrado profissional, que produz, dialoga, ampara, acolhe, estimula, inspira, critica, luta, realiza, imagina e ainda faz rir.

Confira aqui o PDF do livreto!

 

 

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