Skip links

Sertão/ser tão cultural

Compartilhar

por Juliano Mota Campos

Porrão, cavucesto, cilhas arrochadeiras, cochinilho, perneira, alforges, gamela, besta, e taramela. Seja de barro, fibra, pano, couro, madeira, esses objetos estão na memória afetiva do sertanejo como fragmentos de suas histórias de luta em uma cidade que é agreste na geografia e sertão na identidade e no coração: Feira de Santana. No ofício da mulher rendeira, do vaqueiro, assador de castanhas, benzedeiros, rezadores, moedores de cana, raladores de mandioca, torradores de café, na bata do feijão, temos sempre viva a cultura composta por saberes/sabores e que percorre uma estrada com a caatinga em flor, com a cerca de umburana, com a estrada de boiada e com roças de banana.

Essa caminhada a pés descalços pelas lembranças da infância de muitos e que tocam os sentidos de todos, nos remetem ao cheiro de terra molhada e sabor de comida caseira, aos sons produzidos pelas cantigas de ninar, nos conduzem a viagens com carros de flandres e madeira, bonecas de pano, cavalos de barro, tendo como fundo musical o ranger das rodas dos carros de boi. Então, convido a vocês, do sertão ao litoral, da capital ao interior, a entrar na Casa do Sertão e refletirem comigo em meio aos 1.169 elementos/objetos, as relações entre esse museu com a escola, com seus visitantes e com o patrimônio para além das 2400 histórias contadas no acervo de literatura de cordel.

Distante a aproximadamente 20 léguas da capital do Estado (Salvador), o Museu Universitário Casa do Sertão (MCS), atrelado a Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), foi criado em 1978 com o objetivo de divulgar a cultura popular sertaneja, bem como sua memória através dos seus objetos cotidianos selecionados em utensílios, documentos, fotografias, músicas, literatura de cordel, etc. Sempre com a perspectiva de diálogo com a comunidade externa, a Casa do sertão é um museu de história cultural que estabelece um relacionamento com o tempo presente, dinamismo da cultura e do cotidiano, sendo o único espaço dessa natureza em todo o território de identidade do Portal do Sertão.

Ao caminhar com nossa “percata” pela estrada de terra que levará a entrada da Casa do Sertão, podemos ver ao lado direito de quem vai, o Pavilhão Lucas da Feira, mais adiante, um poço, e no derradeiro ponto de chegada: uma jaqueira e várias outras árvores que compõem o cenário do lugar. Ao chegar na casa, externamente com algumas paredes feitas de taipa, temos as exposições organizadas por salas que lembram cômodos de uma casa sertaneja, sendo eles: Sala Dival Pitombo, Sala dos brinquedos, Sala de cerâmica Crispina dos Santos, Sala do couro Eurico Alves e Pavilhão Lucas da Feira. É nesse percurso guiado pelos monitores da Casa do Sertão que iniciaremos nossa reflexão/análise crítica, que também pode ser uma prosa de dois velhos conhecidos: o popular e o erudito.

 

               

Estudantes do ensino fundamental I de Feira de Santana em visita ao Pavilhão Lucas da Feira. Arquivo do Na Carona Turismo Pedagógico.

Desde 2003 quando iniciei minha licenciatura em história, criei uma relação de intimidade com o MCS, lá ocorreram algumas aulas de diversas disciplinas, além de possibilitar aos pesquisadores consulta aos acervos textuais (através da Biblioteca Setorial Monsenhor Renato Galvão e do Memorial Eurico Alves). Os laços estreitaram-se ainda mais quando criei a empresa Na Carona do Conhecimento Turismo Pedagógico (2010) e levava crianças/adolescentes de unidades escolares públicas e privadas da cidade e de municípios circunvizinhos para conhecer, estudar e também muitas vezes apenas “curiar”. Entre 2013 e 2016, período que compreendeu a construção do projeto de pesquisa e a escrita da dissertação de mestrado na UEFS, o MCS fez-se ainda mais vivo na minha prática como pesquisador, haja vista que as fontes para meu objeto de pesquisa estavam disponíveis na sua biblioteca setorial.

Entre as ações educativas desenvolvidas no MCS, segundo a museóloga da instituição destacam-se: oficinas de criação artística, exposições temporárias e itinerantes; palestras; contação de histórias, utilizando a literatura de cordel e/ou textos da cultura popular; recreação com brincadeiras populares e cantigas de roda; exibição de vídeos; encontro de cordelistas e apresentação de artesãos e artistas populares de Feira de Santana. O MCS atende a pré-escola, educação básica, graduação, pós-graduação, idosos, turistas, transeuntes. Ainda conforme a museóloga, 75% dos visitantes é de público estudantil, 55% dos visitantes são da educação básica. A relação museu escola se dá de maneira dinâmica, sendo que o museu, tanto é um espaço de entretenimento/lazer, quanto o público escolar tem a perspectiva de formação e informação.

Inicialmente trataremos das ações educativas voltadas para a visita guiada no museu. Ao percorrermos um circuito sequencial planejado da exposição fixa através das já citadas salas e também de exposições temporárias, percebemos uma organização, uma sequência lógica nas exposições do museu, existindo assim um sentido educativo nelas. No entanto, ao não ser permitido ao visitante andar livremente pelas exposições e poder maturar, imaginar, construir suas próprias impressões e reflexões, atrelado a uma linguagem didatizada das exposições, considerando-se ainda a carência nos currículos escolares sobre elementos da cultura sertaneja, propiciamos um terreno fértil, ou melhor, infértil para uma experiência problematizadora do que é o sertão e o nordeste, fugindo do lugar comum do discurso já verticalmente consagrado.

A linha entre o consumo passivo do discurso de sertão proposto pelo museu por parte do visitante e a apropriação/ressignificação de quem conhece as exposições e o acervo é muito tênue. Se por um lado, quem vai passar as informações são monitores em formação, podendo-se estabelecer uma relação dialógica em que ambos aprendem e ensinam e nessa troca de saberes (comunicação museológica) se forja o conhecimento, despertando também uma identidade sertaneja a partir dessa troca. Pode-se também cair na armadilha de se adotar um discurso impositivo de cultura sertaneja no singular não horizontalizado por parte da instituição museal.

Os monitores passam por uma formação das exposições temporária e permanente, quais são as peças, como foram montadas, texto e contexto e representações que as peças foram usadas. O estudante que exerce a atividade de monitoria na casa do sertão prepara-se para passar informações acerca do processo do porquê determinada peça está ali musealizada, transpõe a linguagem acadêmica para uma mais compreensível, mas nem sempre está sensível a acolher o outro (muitas vezes também estudante) em um diálogo relacional, considerando suas experiências acerca do uso de determinada peça.

Tomemos como exemplo um pote de armazenamento de água. Em alguns lugares vai ser chamado de porrão, em outros será chamado de talha ou “taia” (dependendo da pronúncia), pode armazenar água mas também outro tipo de líquido. Aquele pote tem sua representação, seu valor cultural, tanto no Museu Casa do Sertão quando ele é musealizado, quanto na residência da avó daquele estudante que está visitando o museu. Esse processo de comunicação dialógica traz elementos de troca de saberes do estudante da UEFS que tem um conhecimento científico e que passou por uma formação metodológica com o estudante/visitante e suas experiências, memórias afetivas, saberes populares acumulados e adquiridos nas vivências do cotidiano. É importante fazer aqui também uma ressalva. Buscar a essência da cultura da região fixando-a em um conjunto de objetos pode se tornar ineficaz, pois corre-se o risco de perder a infinidade de usos possíveis desses objetos que só podemos imaginar.

Para além das visitas guiadas, o MCS desenvolve o projeto “O Museu vai à Escola”. Esta iniciativa traz o museu como algo dinâmico e de pertencimento da comunidade, descentralizando suas atividades para além do espaço institucionalizado. As oficinas ocorrem em escolas públicas, com o intuito de proporcionar ao público a possibilidade de interpretar os bens culturais a partir de várias perspectivas, configurando-se como ferramenta auxiliar no desenvolvimento de atividades complementares à sala de aula. Trazemos como exemplo a oficina de miniaturas em couro, realizada no distrito de Maria Quitéria, foi uma prática relacionada à arte regional.

Ao diversificar o público, principalmente através de ações socioeducativas e criar uma conexão direta com projetos escolares realizados em sala de aula, torna-se salutar e fundamental a interação destes espaços (Museu e Escola), pois cada um tem sua função, eles se complementam. A proposta da Casa do Sertão em oportunizar os educandos um leque mais amplo de conhecimento da cultura popular, especialmente a partir de suas diversas formas de oralidade e do cotidiano, é a imersão necessária no rio da educação informal, sempre tendo no horizonte o exercício constante da busca, da pesquisa, do conhecimento.

Esse movimento torna-se consistente no caso do MCS, devido ao fato deste ser também um lugar de pesquisa, conforme orienta a Política Nacional de Educação Museal. Ter o Memorial Eurico Alves, a Biblioteca Setorial e todo seu acervo museológico, bibliográfico e documental, além de pesquisadores de diferentes áreas em constante produção, propiciam a construção de conhecimentos que tem como ponto de intersecção: pluralidade cultural ancorado no cotidiano e suas múltiplas linguagens: imagética, sonora, escrita, etc.

Na esteira desse movimento de oitiva e diálogo permanente com as instituições que buscam a construção do conhecimento, nesse caso, a relação entre o MCS e as escolas, a museóloga do MCS afirmou que este sempre teve uma postura de escuta das demandas curriculares das unidades de ensino, sendo que dentro do planejamento anual do museu e de suas pautas, direcionava-se o trabalho para o que as escolas demandavam. Exemplo: mês do folclore, aniversário da cidade. A escola sinalizava as demandas e o museu adequava-se a essa realidade na medida do possível. Penso que esse movimento precisa ser refletido com ressalvas, uma vez que existem temas, (a exemplo do próprio folclore), que se não forem problematizados desde o planejamento escolar, passando pela proposta museológica e culminando com o debate mediado pelo professor, pode estereotipar e reproduzir uma gama ainda maior de equívocos teóricos e práticas que não coadunam com o bem comum, distanciando-se do patrimônio como algo próximo, íntimo.

Sobre o conceito de patrimônio aplicado à realidade do MCS, precisamos considerar que para além dos objetos e da materialização, temos o saber fazer, que não é palpável, é simbolicamente o ofício, e isso transcende o que vemos no museu. Quando unimos o imaterial que é o saber fazer, e o resultado do saber fazer, estamos falando de uma cultura que deve ser patrimonializada e o patrimônio resvala diretamente em um processo de valorização, reconhecimento desta identidade. Patrimônio é quando passa por um sentimento de pertença, quando você reconhece a partir de suas histórias, vivências, experiências. Antes de ser um bem que deve ser patrimonializado, é um bem do querer bem da afetividade, lugar de recordação. Por isso que agora temos vários tipos de museus: Museu da Maré, Ecomuseu de Pacoti, etc. A educação patrimonial deve vir associada a esse processo de identidade cultural.

Já que falamos de afetividade, vivências e experiências, não podemos negligenciar as relações nesse processo permanente de diálogo com o patrimônio. A relação com os auxiliares de serviços gerais segundo a museóloga foi sempre de muito cuidado, tanto no exercício do seu ofício, quando passava por um acompanhamento inicial e periódico das limpezas, sendo que eles não limpavam as peças do acervo do museu (isso era de responsabilidade da equipe técnica), e sim os vidros, piso, paredes, móveis relacionados ao expediente e tinham uma formação básica no manuseio de um balde com água, rodo, cera, o que pode e o que não pode, até uma relação de diálogo permanente sobre histórias que muitos viveram a partir das memórias colocadas em evidência ao verem determinado objeto ou observarem alguma prática cultural imaterial: “Reisado do Tomba” em presépios de Benta Machado.

Os vigilantes tinham uma formação no atendimento inicial na chegada, muitas vezes presos a procedimentos meramente mecânicos independentemente do público a quem atendessem. Outros mais sensíveis e atentos ao processo chegavam até a acompanhar o percurso da visita com olhar atento, transcendendo algumas vezes até as suas atribuições originais. Os monitores faziam leituras principais e complementares :glossário sobre as peças, monografias, obras de memorialistas, etc. Depois observavam a condução do grupo, depois guiavam com auxílio e por fim sozinhos, sendo para alguns, apenas práticas repetitivas e pouco problematizadas Alguns professores estabeleciam relações entre o conteúdo e o que era visto e vivido no MCS, transversalizando e dando sentido ao conteúdo. Guias de turismo não visitavam o museu. O MCS não produziu nenhum material didático, limitando-se a alguns folders informativos de exposições específicas/ temporárias.

Ao fim dessa prosa, já ouço o canto da cigarra e o advento de novos tempos. Tempo em que a comunidade deve ser a protagonista sobre a escolha do patrimônio e tudo que a ele envolve como já sinalizavam os inventários participativos. Protagonismo também de grupos sociais que ao reconhecer o patrimônio cultural empoderaram-se a partir de ações educativas como nos disse Janice Gonçalves. Tempo de respeito e valorização aqueles que nos legaram a cor da nossa história, os sons que vem da África e a religiosidades que viveu nos porões sob a tutela de algozes vestidos com a indumentária da colonialidade. Tempo de SERTÃO! Tempo de SER TÃO DECOLONIAL!

Comentário