Em Cima Daquele Morro
por Nataraj Trinta
Mestranda da Pós em Mídia e Cotidiano da UFF e integrante do Grupo de Pesquisa Tempos
“(…) Onde a inteligência impera é que se dá coisa pior: e morre a fauna e não se ouve o sabiá cantando! E morre a flora e não se vê a flor desabrochando! E não se escuta mais o ronco daquela cascata! É o fim da vida, é o fim da água. Nêgo tá matando a mata! Por cima daquele morro passa boi, passa boiada, passa boiada. Tem movimento paca!” (Arnaud Rodrigues. In: LP Som do Paulinho, 1976)
A Independência e a associação com a ideia de “liberdade” sempre foram uma espécie de “enigma” e coube à redação do periódico Pasquim em 1970 uma tentativa de decodificá-lo. Inovando no mercado editorial com humor e entrevistas polêmicas, o Pasquim não demorou para ser uma das revistas mais compradas. Porém, junto à fama, os inimigos. E esses eram nada menos que agentes do governo ditatorial dos anos de chumbo. A perseguição ao Pasquim ganhou contornos mais críticos após o cartunista Jaguar intervir no quadro “Independência ou Morte” e inserir no lugar da famosa frase, o refrão “eu quero Mocotó” em referência à canção de Jorge Ben interpretada por Erlon Chaves no Festival Internacional da Canção daquele mesmo ano. “Mocotó” era o apelido dado aos joelhos, e os artistas estenderam seu uso para referir as partes íntimas das mulheres. Era a febre da minissaia. Em 31 de outubro um grupo de 11 jornalistas foi conduzido a reclusão forçada pelo temido DOI-CODI sob a acusação de insulto a um símbolo nacional. O Estado autoritário não admitiria afronta aos signos da Independência pátria há dois anos do Sesquicentenário da Independência.
Os contextos entre 1970 e 2022 são distintos. No primeiro momento estava em vigência atos institucionais como o AI-5 dando garantias ao Presidente da República para decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras de Vereadores em estado de sítio ou não. Além de qualquer cidadão estar passível de represálias, suspensão ou a cassação de seus direitos políticos e individuais (como demissão, aposentadoria, remoção funcional, prisão etc.). Isso sem falar a forte censura aplicada à imprensa, à cultura e à educação. Hoje há a Constituição Cidadã de 1988 com recursos legais mais sólidos na defesa dos direitos coletivos e individuais. Difere também o estatuto da liberdade de expressão. Nossa imprensa, e em especial as artes brasileiras vivenciam outra inserção no circuito mundial de mídias e comunicação e de arte contemporânea. Não que não tenhamos autoritarismos e episódios fascistas nos rondando, mas hoje o artista Jaime Lauriano não poderá ser arrastado à prisão por lesão ao símbolo pátrio quando expõe Independência e Morte (2022) no 37° Panorama da Arte Brasileira, com o tema Sob as Cinzas, Brasa no Museu de Arte Moderna de São Paulo.
A obra é direta e contundente. Já não se coloca a dúvida, afirma-se a morte nas variadas triangulações de signos, seja através de campos verticais da esquerda, centro e direita, ou em camadas que fazem referência aos planos geomorfológicos como o riacho, o solo e o céu. Dentro e fora do quadro vemos disputas e confrontos simbólicos, bidimensionais, tridimensionais e atuais. Saltam aos olhos os elementos humanos tirados de onde estariam na tela original. No centro do quadro ao invés do “perpétuo herói” que berra, uma frase nos transfere ao início da crise pandêmica de Covid-19: “PASSA BOI, PASSA BOIADA”. Mais especificamente a 22 de abril de 2020, quando em uma reunião ministerial, o ex-ministro do Meio Ambiente do governo do “falso Messias”, Ricardo Salles, sugeriu aproveitar a desatenção da sociedade para afrouxar as regras de proteção ambiental.
A composição de Pedro Américo é monumentalizada em uma espécie de placa de bronze em miniatura. A referência ao item de colecionador substitui um integrante da guarda Imperial de D. Pedro I montado em seu cavalo em movimento retirando de si os laços que uniam Brasil a Portugal e cujo cavalo tocaria com a pata o riacho do Ipiranga na tela oficial. Em seu lugar uma das diversas triangulações de signos visuais rompem com o vazio da devastação, transferindo o movimento do que antes era figuração para os olhos de quem mira a obra. No canto esquerdo inferior, os números “22/ 22/ 22” inscritos no riacho, aludem o ano do “grito”, o centenário da Independência e Semana de Arte Moderna, e o atual Bicentenário da Independência. Um pouco acima, um adesivo com a figura principal da tela Abaporu (1928) de Tarsila do Amaral se soma à leitura às margens do riacho. Diferente da tela original, o cacto está marrom e acompanha a paisagem com sinais de recentes devastações e incêndio. Referências às constantes tragédias ambientais e humanas, como os rompimentos das barragens sob responsabilidade da Vale do Rio Doce: do Fundão em Mariana em 05/11/1915 (45 milhões de m³ de rejeitos de mineração de ferro despejados) e a barragem em Córrego do Feijão, Brumadinho com estimativa de 14 milhões de m³ de rejeitos de mineração de ferro despejados, 252 pessoas mortas e 13 pessoas desaparecidas em 25/01/2019.
Não é por acaso que Abaporu, “homem que come gente” em tupi-guarani, surge do lado esquerdo na obra-instalação em acrílico, adesivos, carvão, impressões a jato de tinta, ponta seca e soldadinhos de chumbo sobre placa de MDF. A tela dá origem a arte antropofágica de Tarsila. Em termos formais significa uma fase que associa elementos ora humanos, ora geométricos com a natureza através de fantasmagorias, atmosfera noturna e inquietação. Características e sensação presentes em Independência e Morte. A leitura conceitual do Abaporu nos dirige ao canibalismo que influencia estruturalmente e visualmente o Manifesto antropófago (1928) escrito por Oswald de Andrade retomando a ideia de formação social do Brasil através de processos de diálogos e choques entre culturas.
Seguindo o rastro de mistério, como que camuflado na moita, o “olho da providência” – muito usado pela maçonaria, e até pela sociedade dos Illuminatti¹. Completando a triangulação visual, com feição de raiva, um mascote da “seleção canarinho” criado pela Confederação Brasileira de Futebol para os jogos da Copa no Japão. Popularmente chamado de “canarinho-pistola”, foi lançado a menos de dois meses depois do golpe de impeachment sofrido pela presidenta Dilma Rousseff em 2016. O stick amarelo e o signo maçom encurralam o pequeno “Abapuru”. O símbolo do “olho da Providência” aparece pela segunda vez na cor preta, no canto inferior direito, ao lado dos dizeres “MARGENS PLÁCIDAS”. Um pouco acima, a bandeira do império com dois símbolos de Exú na diagonal se cruzando. Em sequência as mãos que oram. Subindo mais o olhar, outra imagem “amarrada em nome de Exú”. Trata-se de um cartão telefônico da Brasil Telecom de 2004, série “Independência do Brasil”, contendo a cena do grito. Em segundo plano, outro canarinho-pistola aparece ao lado do casebre quase que soterrado em lama. No céu a frase “ACIMA DE TUDO”. E acima do quadro, os bonecos de chumbo. No canto direito, os primeiros elementos levantam as armas imperiais e são seguidos pelos militares, pela guarda imperial, pela tropa de choque, pela guarda de honra da presidência (todos misturados) e por fim, por um soldado cansado. Trinta e quatro bonecos da direita marcham contra doze elementos pouco armados que do lado esquerdo sustentam as bandeiras do Movimento dos Sem- Terra, movimento de luta antirracista e do movimento anarquista.
Inscrito sobre as nuvens, a afirmação “QUEM NÃO REAGIU ESTÁ VIVO” retorna ao tal “enigma”: qual é a liberdade possível para aqueles que não aceitam a “independência” sistêmica? A obra de Lauriano é tão sonora quanto o “Grito do Ipiranga”. Mas dessa vez ela sopra a música de protesto sincopada de Arnaud Rodrigues: um artista com uma obra pouco celebrada, assim como são as geniais ações e criações do povo brasileiro. Povo que não se cansa de perguntar: espelho, espelho meu, quem sou eu?
¹Sociedade de Amigos da Biblioteca Nacional. Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 6, n°69. Rio de Janeiro: junho de 2011, p. 25.