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Outros 500

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por Carina Martins

Estou em Santa Cruz Cabrália, considerado o território de início da conquista portuguesa com a realização da Primeira Missa (essa viagem começa aqui http://l1nq.com/expor2000). Com o passar dos dias, ganhamos um pouco de intimidade com as toponímias oficiais e paralelas, e elas dizem muito. Fico na travessa Sucupira, em um bairro cortado por ruas com nomes de árvores, que divisa outro com nomes de povos originários, todos eles ligados por uma rodovia que é conhecida, neste trecho, como Rota do Descobrimento.

Quase todos os dias passeio com minha cachorra e descobrimos (aí sim) dois “shoppings” circulares. Um, chamado “Shopping dos Brancos”, tem formato semi-circular com amplo estacionamento e oferece serviços de lavanderia, imobiliária, advocacia e, curiosamente, a única loja de artigos religiosos afrodescendentes que vi por aqui. A maioria de suas lojas, contudo, está fechada. Seu piso imita as famosas ondas de Copacabana, também com pedras portuguesas.

Em meio a tantas estátuas de colonizadores na cidade, encontrei a primeira derrubada. Conversando com a lojista, que estava revoltada com a destruição que havia ocorrido na véspera, tentei disfarçar minha satisfação e ouvi-la sobre a importância da estátua de gesso de um português. A senhora, cujo nome vou omitir, disse que aquelas imagens eram importantes para o turista fotografar, que era muito bonita e considerava que houve intenção de derrubá-la, já que os ventos fortes não conseguiriam deslocar sua base de ferro.

Aqui, quem se ajoelha é o colonizador. (Estátua quebrada em Coroa Vermelha, agosto de 2022, fotografia da autora).

Um pouco mais à frente, temos o denominado “Shopping indígena” ou “Pataxópping”, cuja existência é logo identificada por placa e músicas. O formato circular evoca uma grande oca, com inúmeras lojas de artesanato e, ao centro, um grande pátio com uma estrutura circular e teto vegetal onde acontecem apresentações culturais e palestras. As paredes circulares trazem imagens de povos originários com fauna e flora, inclusive com onças, tucanos e jacarés, o que me gerou bastante estranhamento. Todas as lixeiras são pintadas com grafismos indígenas, o que demonstra um imenso cuidado com o espaço. Na região, também encontramos um “Museu Indígena”, fechado há muitos anos, conforme apurei em conversas com trabalhadoras das lojas. Ele foi previsto como parte das Comemorações oficiais e tentarei investigar melhor sua história enquanto estou aqui.

Não há, ou ao menos não vi, naquele espaço comercial-cultural, nenhuma referência explícita a resistências ou contraleituras em relação à narrativa de conquista. Ou sobre a intensa luta pela demarcação das terras indígenas. Ou sobre o Movimento Brasil outros 500. Talvez no Museu, suponho, mas não foi possível visitá-lo ou entrevistar alguém envolvido em sua elaboração.

DESENHO DE JULIETE PATAXÓ, com a cartografia de uma criança indígena sobre os “chops” – livro América, página 60

Fui procurar então outras fontes e me deparei com o belíssimo livro “Lições de Abril”, de América Lúcia Silva Cesar. A pesquisadora, por ironia com nome de colonizador, realizou um trabalho de campo entre os Pataxó em 1999 e 2002, justo na temporalidade das “comemorações”, na elaboração de sua dissertação na Unicamp. Seu objetivo principal era registrar as múltiplas vozes indígenas e acompanhar os diálogos e embates entre as propostas oficiais de “Comemorações do V Centenário do Descobrimento” e os movimentos sociais organizados em torno do “Brasil: outros 500”.

Pela leitura da obra, muitas suposições foram confirmadas. A ação do Estado àquela época foi responsável por intensas desapropriações e destruições propositadas de outros marcos patrimoniais, a exemplo do Monumento à Resistência Indígena. Afora a lembrança dos gases e balas de borrachas sob chuva forte contra os povos originários, tão intensa em minha vivência do evento, percebi que a exclusão de qualquer caráter democrático foi muito mais estrutural.

A suposta celebração dos 500 anos foi duramente criticada na esteira de movimentos de contradiscursos na América Latina em 1992. O naufrágio da Nau Capitânia construída para a ocasião é uma imagem forte que sintetiza o fracasso oficial, que previa a construção do Museu Aberto do Descobrimento (MADE), com intervenções em amplo território de 1.200 km² entre Belmonte e a Costa do Cahy, tudo gerenciado por uma ONG com nenhuma representatividade e pouca transparência. Naufragou também, pois não encontrei nenhum indício de sua existência atual. O projeto original, elaborado pelo arquiteto Wilson dos Reis Neto, previa um Mini-Parque em Coroa Vermelha, um Memorial do Encontro. Sim, este era o nome. Teria ainda um Terreiro da Cruz sob o mar, uma Taba Kamayurá (sim, do Xingu para o litoral baiano) e um Museu do Encontro, com uma réplica de caravela. Além disso, o shopping chamaria Pátio Jesuítico. É surreal, mas foi o projeto escolhido. O Movimento “Brasil 500 anos de resistência indígena, negra e popular” reuniu, portanto, diferentes movimentos sociais em torno da crítica ao evento, além de objetivar garantir direitos como a regularização das terras indígenas.

América descreve o ambiente de tensão e a saga de demarcação das Terras indígenas . Iniciada em 1985, houve obstruções por parte do Governo da Bahia para garantir o MADE, que sobrepunha às terras dos Pataxó. Após uma incisiva atuação da FUNAI, com apoio da Procuradoria da República (que saudades das instituições…), o processo começa a avançar, embora com contestações. Lamentavelmente, um episódio espúrio da História do Brasil contribuiu para resolução..

Tenho em minha memória o assassinato de Galdino Jesus, Pataxó Hã-Hã-Hãe, como algo muito marcante. Homens brancos de classe média atearam fogo em seu corpo enquanto dormia sob marquise em Brasília, por motivo de “distração”. Não sabia, contudo, precisar a data, lembrava apenas da proximidade com o Dia do Índio. Pesquisei: 20/04/1997. O poeta Mário Chagas escreveu poesias em seu livro “Línguas de Fogo” sobre essa dolorosa memória.

“louvada seja a memória do cacique galdino
morto queimado vivo na cidade de brasília
no dia vinte de abril um dia depois do dia do índio
dois dias antes do encobrimento do brasil”

Qual foi minha surpresa em descobrir que Galdino foi a Brasília justamente para discutir o processo de desocupação das terras indígenas em Coroa Vermelha! Os pontos se entrelaçam. Seu assassinato e a repercussão na mídia nacional e internacional pressionaram as autoridades em reconhecer o processo de regularização, sendo ainda necessária intensa mobilização indígena em episódios de invasões da Reserva da Jaqueira por parte da empresa Góes- Cohabita. Em outubro de 1997, a posse permanente foi reconhecida, abrangendo a área de Coroa Vermelha e litoral dos municípios de Santa Cruz Cabrália e Porto Seguro.

A forte tensão com início das obras e preparativos do evento foi documentada com muita sensibilidade por América. No próximo post, vamos conversar sobre estas memórias a partir das perspectivas atuais dos Pataxó sobre este passado tão recente.

O que posso adiantar é que essa semana, viajando para Santa Cruz, percebi nos muros da Escola Diferenciada Pataxó Hã-Hãe-Hãe vários cartazes de luta e denúncia em relação à violência de grileiros e a omissão da polícia em Monte Pascoal. Sinais de permanência e mesmo acirramento de conflitos. Termino, então, com as palavras do poeta:

“os burgueses não gostam de índio
os policiais não gostam de índio
os donos das leis não gostam de índio
os cristãos não gostam dos deuses de índio
os políticos neoliberais não gostam de índio”
(CHAGAS, 2008: p 22).

PARA SABER MAIS

CHAGAS, Mario. Língua de fogo ou antes que o mundo acabe. Rio de Janeiro, RTC, 2008. Disponível em: mariochagas.com/wp-content/uploads/2020/04/linguadefogo.pdf

CESAR, América Lúcia Silva. Lições de Abril : a construção da autoria entre os Pataxó de Coroa Vermelha Salvador : EDUFBA, 2011.

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