Trilhas da ditadura, Via Crucis da democracia
por Roberta Guimarães
Professora do Departamento de Antropologia Cultural da UFRJ
Todo percurso é a travessia de um corpo que, de passo a passo, constrói frases e tece um texto. Os percursos de memória trazem ainda a particularidade de nos convocar para um estado imaginativo, para uma projeção ao passado que, tal qual o caminhar, depende do vivido. Mas que, assim como as ruas da cidade, depende de uma experiência compartilhada, de marcos territoriais que, por meio do narrar, podem conduzir a uma reflexão sobre o tempo presente.
O percurso pedagógico “Trilhas da Ditadura civil-militar no Centro do Rio de Janeiro”, idealizado por Vinícius Ávila (professor de história SME-Rio/ Doutorando CPDOC-FGV/ perfil @trilhasdaditadura.cidaderio) foi o provocador dessa experiência de embarcar em tempos, locais e imagens que, mesmo já tendo percorrido tantas vezes, me levavam a outros pensamentos. Ao evocar o sentimento coletivo de urgência por conversar sobre esse período histórico que continua a assombrar nossa frágil democracia, promoveu o gatilho necessário para que pudesse mudar de lentes e rever a cidade.
A caminhada possibilitou também um encontro intergeracional. Organizada no dia 19 de outubro em conjunto com o projeto de extensão Memórias Sensíveis Brasileiras (@nesp.ufrj, vinculado ao Departamento de Antropologia Cultural da UFRJ), reuniu cerca de 15 universitários oriundos da UFRJ, UERJ e UniRio. Com os olhares curiosos de quem vivenciou o período de ditadura e de redemocratização brasileiras apenas nos livros da escola, como uma memória de segunda mão, eles seguiram com os olhos nos prédios, placas e calçada, pontuando o percurso com comentários, silêncios e muita indignação.
Percorremos juntos a antiga sede do DOPS-RJ e do Superior Tribunal Militar, a Faculdade Nacional de Direito, a Central do Brasil, o Comando Militar do Leste, o Palácio do Itamaraty, o Colégio Pedro II – Unidade Centro e a Igreja da Candelária. Nessa travessia, quatro momentos me marcaram em especial por simbolizarem também a Via Crucis da democracia.
Encontramos de portas cerradas a outrora sede do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). Limite intransponível, observamos apenas a fachada do prédio que, embora desativado, apresentava esforços de conservação. Vinícius nos contou sobre a batalha de memórias que desde a desativação do prédio, em 2000, era travada para que o imóvel passasse a abrigar um museu dedicado aos direitos humanos e à conscientização política e social, tipo de instituição que seguia até os dias atuais inexistente na cidade do Rio de Janeiro.
No entorno, o cheiro de fezes e de urina e as calçadas esburacadas contrastavam com o imponente prédio espelhado da Petrobras, cuja recente construção que se proclamava revitalizadora do local abalou as estruturas da antiga Igreja de Santo Antônio dos Pobres. Quarteirão-metáfora, ali tudo se juntava sem se acomodar: repressão, pobreza e riqueza de um país de profundas desigualdades, de fé fragilizada e de lutas sem fim.
Outros dois prédios encenavam o binômio repressão-resistência, expondo os traumas nacionais através de histórias silenciadas e vociferadas. Em frente ao Campo de Santana, a antiga sede do Superior Tribunal Militar (atual Odontoclínica Central do Exército) e a Faculdade de Direito da UFRJ travavam uma guerra de sentidos em seu jogo de placas.
No prédio militar, lugar de julgamento dos crimes políticos no período da ditadura, a marca da vergonha era a eloquente falha retangular na cor da pedra da fachada, que ao lado do portão indicava a retirada da antiga placa de identificação. Nas paredes internas da faculdade, o esquecimento era combatido com inúmeras placas que lembravam os alunos mortos e desaparecidos e a luta permanente pela democracia. No segundo andar, uma delas era dedicada à “descomemoração”: afixada em 1988, ano de promulgação da Constituição Federal após o longo período ditatorial, a placa expunha a repulsa por aqueles que haviam colaborado com a intervenção militar.
Passado, presente e futuro também se uniam no espaço compartilhado pela Central do Brasil, pelo Comando Militar do Leste e pelo Panteão Duque de Caxias: como não perceber que as repressões às manifestações contra o regime civil-militar guardam incômodas similaridades às coibições e prisões ocorridas nas Jornadas de Junho de 2013? Os universitários do percurso lembraram desses dias. Alguns estavam lá. Todos permaneciam abismados com os desdobramentos políticos que abriram as recentes crises e fissuras institucionais no país.
Esses e tantos outros lugares reverberam até hoje as sensíveis, dolorosas e por vezes ambíguas memórias da repressão e da resistência no país. Nessa peregrinação contemporânea, nosso calvário foi a Igreja da Candelária, palco de tantas manifestações e da missa de corpo presente do estudante secundarista Edson Luís, que em março de 1968, foi atingido por uma bala no peito durante um protesto no restaurante Calabouço.
Transcorridos 25 anos e já em pleno período democrático, ocorreu ali também na área da igreja a chacina que vitimou 8 jovens e feriu muitos outros, atingidos por disparos de policiais e milicianos. Conhecida como a Chacina da Candelária, são os movimentos sociais que cultivam até hoje sua memória, através da insistente pintura de corpos vermelhos no chão. Para que nem a chuva e nem qualquer governo nos deixam esquecer que nossos direitos nunca estão garantidos, sempre haverá luta pela frente.
A cidade não para de nos contar sobre o passado do país. Cabe a nós percorrê-la e ouvi-la. E, assim fazendo, agir em prol de novos caminhos de liberdade e cooperação.