Em quantas gavetas cabe o mundo?
por Carina Martins
Lembro de uma vez, quando trabalhava no Museu Mariano Procópio, pensar qual objeto eu salvaria de um incêndio. São essas imaginações tolas que nos levam a olhar para o que priorizamos como mais importante, sendo que em nenhum caso, eu me corrigia logo depois, eu precisaria entrar num museu em chamas. Mal sabia que, uma década depois, servidores do Museu Nacional o fizeram e salvaram o que foi possível, o que consideraram mais precioso no incêndio criminoso de 2018.
À época, escolhi o armário de gabinete de curiosidades do cientista Louis Agassiz como meu objeto de salvação prioritária. Minha escolha não tinha tanta lógica, pois as minicoleções de minerais e conchas provavelmente sobreviveriam ao incêndio, transmutados, conforme o que ocorreu no Museu Nacional, tão bem registrado por Aline Montenegro na exposição “Arqueologia de um resgate”.
O que me atraía tanto naquele artefato? Estou a pensar nisso em meio aos preparativos da COP27 no Egito, à recente morte de Bruno Latour, à vitória de Luís Inácio da Silva como presidente do Brasil.
Estou impactada e assustada com os impactos do negacionismo da crise climática na política e em nossas sensibilidades, o que me faz lembrar de uma leitura de Carl Sagan, que já na década de 1990 alertava para o potencial catastrófico de uma sociedade norte-americana cada vez mais analfabeta cientificamente, a largo dos imensos avanços tecnológicos que permitiam “iluminar os demônios”. Latour, décadas depois, nos faz pensar sobre o trinômio indissociável entre crise climática, democrática e desencantamento do mundo comum, ao procurar estratégias de aterrar a humanidade.
Estamos no século XXI e respiramos nos últimos quatro anos no Brasil o pior do pior do negacionismo: a valorização da ignorância e da truculência; o escárnio e humilhação constantes aos campos artísticos, científicos e pedagógicos; a difusão de respostas simples para problemas complexos; a disseminação sem freio de notícias falsas; a imposição de discursos contraditórios que turvam o debate público; a ruptura com a noção de confiança e respeito às instituições; o fanatismo religioso que referenda o vil e percebe o diferente como inimigo. Meus ouvidos estão cansados de absurdos.
Entretanto, o objeto que escolhi para hoje revela um outro mundo, no qual o fascínio pela ciência, pela natureza, pelo conhecimento, era mote de muitos agentes sociais, ainda que as instituições universitárias não existissem no Brasil. Os museus ocuparam o lugar de produção científica, de partilhas internacionais, de formação de profissionais qualificados. Os viajantes europeus tiveram importante papel nessa trajetória, ainda que possamos questionar seus pressupostos colonialistas, muitas vezes mesmo extrativistas.
Louis Agassiz foi um viajante naturalista francês que esteve no Brasil entre 1865-1866, coordenando a Expedição Thayer. Foi professor de Harvard e em 1859 fundou o Museu de Zoologia Comparada. Descreveu mais de uma centena de peixes coletados por Spix e Martius na expedição ao Brasil. Posteriormente, ele mesmo viajou por Minas Gerais e esteve na Fazenda Fortaleza de Sant’Anna, onde fez um belo registro de sua monumentalidade em meados dos oitocentos. A Fazenda pertencia à mãe de Mariano Procópio, também uma colecionadora interessada, cujo neto, Alfredo Ferreira Lage, construiu o Museu em homenagem ao pai (ver essa história aqui).
No catálogo do Museu, o objeto é apresentado como “armário de minicoleções”, descrito como pequeno armário em madeira com 24 gavetas e puxadores em marfim. De acordo com o verbete, nos recipientes circulares havia minerais, corais, conchas, estrelas-do-mar, ouriços, insetos diminutos, entre outros. Informa ainda que, de acordo com a tradição oral, foi um presente de Agassis a Mariano, por ocasião de sua visita em 1865.
Maria Salete Figueira, bióloga da instituição, revela que Alfredo começou sua coleção quando criança, com apenas nove anos, justamente pelos minerais. Importa lembrar que sua formação foi europeia, onde certamente estudou Ciências Naturais a partir da premissa evolucionista tão em voga no século XIX, momento no qual o colecionismo era pautado nos três reinos mineral, vegetal e animal, norteadores de coletas e acúmulos. Os gabinetes de História Natural eram atrações importantes e o deslumbramento causado pela ciência engajava o público em busca das curiosidades.
Em minha pesquisa de Doutorado, encontrei um caderninho manuscrito de estudos de Ciências Naturais, com a organização dos estados positivos da sociedade: barbárie, selvageria e civilização, uma forma de conceber de forma evolucionista também a história humana. Queria tanto que fosse do Alfredo para demonstrar a relação de sua concepção de História com sua coleção, mas não pude comprovar. Para minha frustração, todos os indícios levavam a crer que era de seu pai. Uma letra esmerada que sintetizava o repertório mais contemporâneo de compreensão da relação humana com a natureza, tendo em vista que o principal critério para identificação das fases era justamente os artefatos, o que incentivou ainda mais o colecionismo e um certo tipo de etnografia.
Qual minha surpresa, ao pesquisar um pouco mais sobre o pensamento científico de Agassiz, e descobrir que era um criacionista e contestava os estudos do caderninho ao afirmar que a evolução da “raça degenerada” era impossível.
Volto ao Gabinete. Qual criança não ficaria louca para brincar com as gavetinhas, descobrindo riquezas e pequeninas amostras do universo? Aliás, eu descobri faz tempo que eu amo gavetinhas, esconderijos, baús. É um espírito infantil de segredos e descobertas, não tenho dúvidas. Isso pode ter afetado minha escolha salvacionista.
Só que o gabinete era brincadeira de adultos altamente comprometidos com a ciência. Acreditavam, à época, que colecionar o universo em séries, classificar, nomear, guardar e exibir era garantia do domínio da natureza pelo homem. Vou colocar homem mesmo, e não ser humano, pois sabemos que tratava-se de uma ciência altamente misógina, como o brilhante livro de Rosa Montero sobre Marie Curie destaca tão bem. Uma mulher que pagou muito caro por esse ambiente hostil e, ainda assim, ganhou dois prêmios Nobel nas ciências “duras”.
Este armarinho sempre me pareceu um artefato feminino. Contudo, sua esposa Elisabeth, organizadora e participante da expedição, co-autora do livro, simplesmente não aparece na tal “tradição oral”. Eu posso imaginá-la em tantas e diversas ações, como redigir o diário, pesquisar em campo, estudar os exemplares, escrever palestras e livros, organizar as minicoleções por horas a fio. Embora muitas pesquisas apontem seu pioneirismo e relevância, o que ficou, ao menos na memória do MMP, foi o nome de Louis.
Agassiz gostava mesmo era de minerais e conchas. Não tanto de seres humanos que ele considerava inferiores, como os negros. Adepto do criacionismo, seu pensamento hoje seria enquadrado como racismo científico, conforme aponta a historiadora Keila Grinberg. “Para Agassiz, a humanidade – fruto da criação divina – era formada por diferentes espécies, independentes e jamais mescláveis entre si. (…) os seres supostamente menos evoluídos estariam condenados à inferioridade eterna”. Para comprovar sua hipótese, ele realizou uma série de fotografias de negros e mulatos no Brasil como um alerta aos EUA para comprovar os males da miscigenação racial.
Ah, os objetos. Começam bonitos e encantadores. Terminam com suas gotas de sangue, como bem nos lembra Mário Chagas.
Ah, a ciência. Revela beleza e encantamento. E projeta as sombras da humanidade…
Ah, o fogo. Transmuta e ilumina. Acende nossa capacidade de digerir e aprender
Ah, o mundo. Nós, o que somos, senão o mundo, do mundo, com o mundo?
Essa cisão entre ser humano e natureza, herdada das gavetinhas colecionistas, nos impede de ver que, a depender de nosso caminhar, seremos nós os engolidos pela destruição e não imagino que haja uma consciência, a não ser a nossa própria, que nos priorize para um salvamento.
PARA SABER MAIS
AGASSIZ, Louis; AGASSIZ, Elisabeth. Viagem ao Brasil. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/1048/584305.pdf?sequence=4&isAllowed=y FIGUEIRA, Maria Salete Ferreira. História Natural. In: ´O Museu Mariano Procópio`”. São Paulo: Banco Safra, 2006.
GRINBERG, Keila. O racismo de Louis Agassiz. Disponível em: https://cienciahoje.org.br/coluna/o-racismo-de-louis-agassiz/
LATOUR, Bruno. Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.
MONTERO, Rosa. A ridícula ideia de nunca mais te ver. São Paulo: Todavia, 2019.
Vídeo do Museu Peabody com debate sobre Agassiz, raça e Brasil. https://peabody.harvard.edu/video-race-representation-and-agassiz%E2%80%99s-brazilian-fantasy