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Do Sonho de um sonho…

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por Desirree Reis

No sopé do Morro da Mangueira, o Museu do Samba registra, desde 2009, histórias de vida de sambistas por meio do projeto Memória das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro. De lá pra cá, foram feitas mais de 170 entrevistas, compondo um acervo audiovisual único sobre o modo de vida do samba.

Caio Sérgio, eu, Mestre Ciça (depoente) e Vinicius Natal na entrada do Museu do Samba em dia de gravação de depoimento. 2022. Foto: Acervo Museu do Samba.

Chego nessa história em dezembro de 2013.

Sambista e mangueirense por amor herdado, a fachada do museu era sempre um ponto de atenção, nas minhas idas para a quadra da verde-e-rosa. Mirava e insistia: “Meu sonho é estar ali”. E quando menos esperava, já estava pisando pela primeira vez naquele terreiro. O compasso certo para que eu, historiadora então recém-formada, me reconhecesse num museu com meu mundo conectado a outros mundos bem parecidos com o meu.

O museu parecia uma fábrica de sonhos. Alguns (muitos!) já tinham sido realizados, quando cheguei. Sonhos de uma, duas ou mais gerações de sambistas. Sonhos transmitidos, compartilhados, reinterpretados, reinventados. Um dos sonhos de Nilcemar Nogueira , Leci Brandão, Nelson Sargento, Rachel Valença, Aloy Jupiara e outros bambas é ótimo exemplo: o samba carioca (as Matrizes do Samba no Rio de Janeiro) já era reconhecido como Patrimônio Cultural do Brasil. Todo processo tinha sido conduzido pelas mãos do povo do samba em roda no museu. Na época, seu Nelson Sargento dava o tom da celebração: “O samba é finalmente cidadão brasileiro com todas as letras”.

Nilcemar Nogueira na cerimônia de titulação
das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro
– Patrimônio Cultural do Brasil (IPHAN). 2007.
Foto: Acervo Museu do Samba.

A fábrica de projetar sonhos, na verdade, também era fábrica de conquistar sonhos juntxs… a muitas mãos. E com todos os desafios de aquilombar e intervir em uma sociedade racista.

O sonho sonhado tinha uma meta inicial: a implantação do Centro de Referência de Pesquisa e Documentação do Samba Carioca, que hoje conta com mais de 45 mil itens no acervo e muitas pesquisas (acadêmicas ou não) partem dali. O centro foi criado no mesmo ano de inauguração do projeto de memória oral. Volto a ele, minha porta de entrada, onde percorri por vários cantos: pesquisadora, entrevistadora, coordenadora e, o maior deles, privilegiada por escutar grandes mestres. Grata ao Samba!

Eu entrevistando o diretor de carnaval e harmonia Laíla (depoente) para
elaboração da pauta de depoimento. 2018. Foto: Acervo Museu do Samba.
A Porta-bandeira Rita Freitas (depoente) com sua filha Maíra
e neta durante gravação do depoimento. 2018.
Foto: Acervo Museu do Samba.
Vanessa Alves, eu, Aloy Jupiara, a carnavalesca
Rosa Magalhães (depoente)
e Rachel Valença após a gravação do depoimento.
2019. Foto: Acervo Museu do Samba.

História oral na salvaguarda e no direito à memória do samba – e dos sambistas. Muitas histórias foram registradas só ali. Mestres-salas, passistas, porta-bandeiras, baianas, compositoras, compositores… Memórias de desfiles históricos, de processos criativos, dos saberes, dos terreiros, dos quitutes, da religiosidade, das dores, do racismo, da dança, dos batuques, das lutas. Dodô da Portela, Aluísio Machado, Monarco, Delegado, Tia Surica, Alcione, Tia Glorinha, Bira Presidente, mestre Jorjão, Wilson Moreira, Wilson das Neves…

São histórias que se conectam, antes de tudo, pelo samba como movimento de afirmação, resistência, luta pelo direito de cidadania e contra o racismo, liderados por pessoas negras no pós-Abolição no Brasil.

Um olhar aguçado decifra bons problemas de pesquisa nas mais de 400 horas gravadas de documentos históricos do samba.

Acervo do samba pela voz do sambista.

Já foi fonte primária para dissertações, teses, espetáculos teatrais, biografias, produtos audiovisuais… Fonte basilar das atividades do museu, até mesmo as ações educativas, para contar a história do samba em primeira pessoa e dar a ver personagens ocultados pela “história oficial”. Sonho antigo, sonho meu, sonho de nossos ancestrais.

A museóloga Rondelly Cavulla
conduz visita mediada à Exposição itinerante “Para não perder a memória”,
que percorreu escolas públicas cariocas.
Foto: Acervo Museu do Samba.

Escrevo este texto embalada por mais uma memória de afeto: o samba de enredo que minha mãe cantarola desde que me entendo por sambista. E nem é samba da Estação Primeira! É “Sonho de um sonho” , da azul-e-branca do bairro Noel. Uma poesia afiada de Martinho da Vila, Tião Graúna e Rodolpho de Souza, que gingava por liberdade, no carnaval de 1980, idealizando novos horizontes em tempos sombrios de Ditadura Militar (1964-1985).

Dos embalos na voz da minha mãe até as memórias dos sambistas no museu, uma lição faz-se presente: Samba e Política sempre coexistiram.

Samba é política com todas as letras.

Criar o Museu do Samba foi um ato político. E com certa nuance: cristalizar espaços de poder, representação e representatividade pelo direito às histórias e às vidas negras.

Bambas na Sala do Conselho do Samba no museu.
De pé: Mestre Dionísio, Sônia Xangô, Marcia Partideira, Janaina Reis, Nilcemar Nogueira, PQD da Portela, Rachel Valença, Tiãozinho da Mocidade, Pituka Nirobe e Geisa Ketti. Sentados: Tia Surica, Nelson Sargento, Aluísio Machado e Wanderley Caramba. 2016.
Foto: Acervo Museu do Samba.

Um museu, que nasce olhando para injustiça histórica e pautado pela justiça em repará-la. Museu, sendo espaço de lutas negras, para acalentar, pela força política, futuros mais justos e plurais. Um deles é o reconhecimento do samba como parte fundamental da História do Brasil.

O educador Georgie Echeverri em visita mediada
com creche na exposição 100 anos do Samba.
Foto: Acervo Museu do Samba.

Que os amantes do samba, hoje, dia 2/12, celebrem-no em sua negritude (de fato e de direito)! Samba é roda, é democracia. Racismo e samba – nunca é demais dizer – não dá bossa! No Brasil desigual e desumano, perdemos todxs.

Mesmo “com a casa escura”, “com nó no peito” e “com o todavia”, acredito piamente nos novos ares!

Oxalá chegue logo dia 1/1/2023! (Ai de nós se não sonhássemos…)

……………………………………………………………………………………… ¹Nilcemar Nogueira é fundadora e liderança do Museu do Samba. ²“Sonho de um Sonho”, 1980, para ouvir e acompanhar a letra do samba: https://galeriadosamba.com.br/escolas-de-samba/unidos-de-vila-isabel/1980/ ……………………………………………………………………………………… Para consulta ao acervo do Museu do Samba contato@museudosamba.org.br https://www.museudosamba.org.br/ Vídeo promo do acervo Memória das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro: ……………………………………………………………………………………… Para saber mais: IPHAN; Centro Cultural Cartola. Dossiê das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro. Brasília, DF: Iphan, 2014. NOGUEIRA, Nilcemar; SANTOS, Desirree dos Reis. (Re)conhecendo patrimônios: o papel social do Museu do Samba. e-Cadernos CES, n..30, 2018. SANTOS, Katia. Ivone Lara: a dona da melodia. Rio de Janeiro, RJ: BN, Ed. Garamond, 2010. VALENÇA, Rachel. Pontão de Memória do Samba Carioca. Samba em Revista. Rio de Janeiro, Centro Cultural Cartola, Ano 1, n.2, 2009.

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