“Minha cidade não existe mais”
por Carina Martins (escrito dia 3/12)
Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
(Caetano Veloso)
Ouvi de minha mãe esta frase: “minha cidade não existe mais”. E fui ver com meus olhos a que ela se referia. Em um final de semana, foram apagadas duas memórias de pedra e cal. A essas, se somaram as lembranças da perda da minha casa da tenra infância e do meu colégio de toda minha vida. Pensei, “a minha também não”.
Nasci em 1979, em Juiz de Fora, na zona da mata mineira. Caçula de uma família de cinco filhos, vivia no centro da cidade, na rua Marechal Deodoro. De lá, lembro do quintal enorme; do laboratório do meu bisavô que instigava medo e curiosidade; das folhas de taioba que viravam sombrinhas na chuva e dos brincos de princesa nos canteiros do jardim.
Eu não lembro bem quando a casa da Marechal foi destruída, e também não sei o que senti, para ser sincera. Hoje é um prédio feioso, sem nenhum charme, que não deixa entrever as duas casas geminadas que eram de minha família e fazem parte do meu álbum de retratos.
Mudamos para o Bairu quando tinha quatro anos e lá vivi os melhores anos que poderia viver em uma casa onde hoje encontra-se uma placa de “Vende-se” e me faz torcer, todos os dias, para que outra família bem bacana construa outras memórias por lá. Arrepio só de pensar em sua destruição e na perda dessa referência de minha existência. Até hoje, adulta, todos os meus sonhos de casa são lá, mesmo eu tendo morado, sem nenhum exagero, em quase duas dezenas de outros lugares, em outras cidades, até em outro país.
Volto ao hoje. Acordei cedo para ir visitar as ruínas do Castelinho do Bairu, também conhecido como Castelinho do Alonso. Cheguei lá sem nem pentear o cabelo, tenho essas urgências. Estava completamente devastado. Passei quase duas décadas vendo aquela monumental construção todos os dias da minha vida, namorando seu muro baixo ponteado pelo que me parecia pinos de Ludo e imaginando seus personagens. O Castelinho era um quarteirão mágico, povoado por nossa fantasia e afeto.
Hoje, ao chegar lá, observei vários moradores coletando pequenas lembranças entre as ruínas. Os “pinos do Ludo” eram os mais valorizados, sinal de que aquela baixa muralha marcou muitas gerações. Encontrei, fortuitamente, uma querida amiga e fomos juntas percorrer os escombros, tirar fotos e conversar com as pessoas. Vi gente coletando plantas, tirando fotos, selecionando pedaços de azulejos ou cobogós. Foi devastador a dificuldade de reconhecer suas partes: o imenso trator destruiu na madrugada toda aquela monumentalidade e jogou memórias, arquitetura e imaginação em um feio monte de pedra e ferro retorcido. A Lela era vizinha e filmou tudo na madrugada (covardes), com sua própria casa tremendo pela brutalidade do maquinário. Ela me mostrou onde eram os cômodos, contou histórias dos moradores e a vida mais recente do Castelinho, nessa última década que estive fora da cidade. A piscina, intacta, enorme, ainda com água, embora suja, denunciava que houve um abandono planejado por parte da família proprietária, inclusive muito rica e conhecida na cidade.
Eu assisti ao velório do Castelinho. As pessoas entravam, estarrecidas, olhavam para montes de pedras. Não foi uma ou duas, e sim dezenas nesta manhã. Histórias eram contadas, tristeza no ar, alguma revolta. A busca por algo para não esquecer. Com o Castelinho morre o Bairu da minha infância e creio que mesmo a Baleia não terá o poder de preencher o buraco que ficou.
Sempre achei que o Castelinho estava tombado. Fui pesquisar e estava mesmo pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural (Comppac), órgão consultivo da cidade. Só que não foi sancionado pelo então Prefeito Custódio Mattos. Leiam aqui as palavras do parecer, que encontrei no belo artigo do arquiteto Marcos Olender: “(…) vê-se que as questões afetivas sobrepõem-se às objetivas, o que não é válido (…) para fundamentar uma decisão tão grave como a de tombamento” (PJF, 2009). Decisão grave, senhor prefeito, é a gente morrer aos poucos com a cidade se extinguindo dos marcos afetivos para abrigar empreendimentos imobiliários que dão lucros para poucos e dor para tantos.
Soube que a recente proprietária do imóvel havia dito aos moradores que instalaria ali uma clínica de repouso para idosos. Certamente, soube da intensa mobilização da Associação dos Moradores do Bairu por seu tombamento e quis ludibriá-los com um projeto fictício. Destruir na madrugada é muito, muito covarde: impede a despedida, aumenta a indignação.
Encontrei também um depoimento que me encheu de lágrimas e constava no pedido de tombamento realizado. O morador José Augusto Teixeira Miranda escreveu: “(…) tornou-se parte importante do cenário de lembranças que cada um guarda como um tesouro e se algum dia desaparecer será como arrancar um pedaço das nossas vidas (…)” (PJF, 2009)
Arrancaram. Em nome do que? Progresso é um bairro vizinho ao Bairu. Já existe, portanto. O que interessa é mesmo o lucro, é transformar a cidade em mercadoria, a cidadania em deboche. Sejamos francos, o que chamaram de “questões objetivas” para não sancionarem o tombamento são, na verdade, “valores objetivos” ($$$$) e todos eles no bolso de uma família que já detém bastante da cidade.
Minha mãe, que já perdeu tantos recortes urbanos, hoje mora no Centro. Ao lado de uma escola que estudamos, a Casa das Freiras era imponente e simples em suas paredes brancas, seu jardim de rosas e camélias tão bem cuidadas, o portão da garagem que só abria para sair um carrinho de pipoca. Também foi destruída sorrateiramente, deixando uma grande cicatriz. Hoje temos uma foto na família porque minha mãe, institivamente, percorreu territórios com sua neta em 2012 para registrar casarios que lhe eram importantes.
Há remédio para tanta dor? Só se não for anestesia. Tem que doer como um Stella Matutina, um Magister, tem que sangrar. Para que a gente possa honrar o que existe e reivindicar cada vez mais os usos públicos desta cidade, suas memórias afetivas, suas pluralidades, suas múltiplas vozes e barulhos e gritos e berros. E também, claro, a defesa implacável da promoção de políticas públicas que acolham movimentos sociais e sociedade civil. Este exemplo, como tantos outros, mostram que as reivindicações estão canalizadas, os órgãos acessados, os processos postos em andamento. O que falta?
Uma cidade tão pioneira nas políticas culturais precisa ter dirigentes e técnicos sensíveis e corajosos. Ainda temos muito o que percorrer, e pelo que sei, os grandes saltos foram todos decorrentes de plataforma popular.
O Castelinho era nosso sim, era para nossas próximas gerações, eu não quero saber de hierarquias entre questões objetivas e afetivas. Afeto só serve se for de admiração de louça brasonada? Eu não quero discutir se ele era exemplar do neocolonial, aliás, como requerer autenticidade de algo que já nasce de colagem e invenção? Eu não quero saber se ali representava a memória do loteador do bairro! Que então parte deste gigantesco lucro que certamente a família obteve de nós moradores se convertesse na manutenção dessa paisagem afetiva.
Quem diria eu defendendo um castelo, ainda mais mergulhada em leituras decoloniais até a espinha. Aqui quem fala é da terra, de uma moradora apaixonada pelo Bairu e seu cenário surreal com castelinhos, baleias sem cabeça, louras no banheiro do clube e outros assombros que só quem viveu, viu.
Vídeo de Aurelia Moraes, vizinha do Castelinho e moradora do bairro. A violência do braço mecânico destruiu em minutos o que levou anos para construir.
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PARA SABER MAIS
OLENDER, M. O afetivo efetivo. Sobre afetos, movimentos sociais e preservação do patrimônio. Revista do Patrimônio Cultural e Artístico Nacional, v. 35, p. 322-341, Brasília, 2017.