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Doze horas em diligência: um guia feito a galope

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por Carina Martins Costa

Meus caros viajantes, minhas caras viajantes. Lá estamos de novo na estrada para pensar narrativas sobre Petrópolis no ano em que a cidade comemora seu 180º aniversário. Um livro que eu conheci quando trabalhava no Museu Mariano Procópio e fiquei apaixonada é considerado por muitos o primeiro guia de viagem visual, de Revert Klumb, fotógrafo da família imperial.

“Doze horas em diligência” chama atenção pelo título. Já pensamos, em nossos padrões atuais, em uma viagem de Minas Gerais à Bahia, mas não, não. No século XIX, o que dava para fazer era Petrópolis a Juiz de Fora, e com muitos elogios do autor à rapidez, tecnologia e facilidade. De fato, a Estrada União e Indústria, considerada a primeira macadamizada do país, marcou um investimento maciço no transporte de produtos e pessoas, com especial interesse no escoamento da produção cafeeira para os portos do Rio. Em 1861, a família imperial esteve na inauguração da mesma e visitou a residência do empresário Mariano Procópio, responsável pelo empreendimento, o que denota sua importância política e econômica para o Governo.

O guia é dedicado à Imperatriz Teresa Cristina e foi publicado em 1872, com 31 litogravuras. A tipografia foi J.J. Pereira Braga. O manuscrito data de 1870, sendo que o autor anota o início do projeto em 1861. Da mesma forma que o guia de Taunay, a narrativa começa no Rio, com o transporte multimodal até Petrópolis. Há, aqui, preocupação com o detalhamento de horários e preços dos bilhetes, divididos nas classes, sendo a terceira dos “descalços”, ou seja, os escravizados ou trabalhadores rurais empobrecidos.

O guia é estruturado em Partida, Estada e Chegada, com a listagem e descrição de todas as estações de muda da Estrada União e Indústria, que eram os locais para a troca dos animais que carregavam as diligências. No prefácio, Klumb demarca o mérito de ser o “primeiro guia ilustrado de desenhos copiados de fotografia” do Brasil, o que mostra que a disputa por ineditismo era importante, como já vimos anteriormente em Taunay. O autor apresenta as dificuldades em produzir o mesmo e aponta que foi um trabalho feito a galope, com uma ligeira descrição de lugares notáveis. Curioso porque ele mesmo anota, em outro momento, que trabalhou nesse projeto por quase uma década, entre a redação e as fotografias. As tomadas externas eram muito difíceis de fazer naquela época, pois exigia um laboratório móvel e bastante exposição ao tempo. O galope então parece ser mais das mulas que do autor! Se bem que… acho que só mula-sem-cabeça galopa. Enfim.

Interessante notar que ele compartilha a expectativa de leitura por dois públicos, “jovem brasileiro desejo de instrução” e o estrangeiro que guardaria como lembrança das emoções causadas pela natureza. “Entrem, entrem, partimos!” convida o escritor, demonstrando surpresa quanto à velocidade da diligência a 16 km/hora. A partir daí, com as imagens e descrições, acompanhamos a travessia com cascatas, pontes modernas, fazendas e vales férteis. A natureza é observada atentamente e o Rio Piabanha funciona também como eixo narrativo, tendo em vista o desenho da Estrada que o acompanhava.

O maior destaque é conferido à produção de café, com informes detalhados de sacas e importância de algumas estações de muda para armazenamento, como por exemplo, Posse, para onde convergia a produção de Rio Preto.

O autor conversa com os leitores em determinados pontos do guia, em uma perspectiva dialógica pouco comum nesses materiais. “Desculpem, leitores benévolos, se por um momento eu abandono a estrada para falar de coisas que me são caras”. Ou, na linguagem atual, desculpe se abandono a estrada para viajar.

Há um subtexto no guia que é a preocupação do autor com a hipótese de abandono da Estrada frente à construção da ferrovia. Em várias passagens, há elogios ao trabalho de Mariano Procópio, à superação das dificuldades e à tecnologia. A Companhia União e Indústria é considerada uma empresa patriótica. Em relação à estação da Estrada de Ferro, entretanto, desdenha como maciça, pesada e pouco segura. Em determinado momento, sua angústia é revelada ao leitor “O homem deve pois abandonar assim o que lhe custou tantos cuidados e tantos sacrifícios para edificar?”.

O trabalho de Klumb foi realizado ao longo de quase uma década, acompanhando, assim, a própria história da Estrada. De certa forma, a defesa da mesma também era de seu próprio trabalho, pois a ferrovia diminuía a importância de seu guia, bastante utilitário para seus usuários. De fato, seu receio comprovou-se correto e, já em 1875, o trem chegaria a Juiz de Fora, ocupando, dois anos depois, o local das diligências.

Figura 1 Mariano Procópio, em algumas edições a segunda imagem, em outras a última. Único personagem retratado no guia, laudatório ao empresário responsável pela construção da Estrada União e Indústria. 1870.

Após percorrer todas 13 estações de muda, algumas consideradas sem importância ou dignas de nota, o autor descreve a Estação de Juiz de Fora, em frente ao “lindo castelinho” de Mariano Procópio Ferreira Lage, hoje a Villa do Museu. Destaca a estadia da família imperial em 1861 e a magnificência das festas no “pequeno éden”. Várias páginas são dedicadas à região, com detalhamento de suas benfeitorias, da Colônia Agrícola, Hotel União, bosques e cascatas. Uma breve fofoca juizforana (abre parênteses): a construção da estação na frente da casa de Mariano deixou a cidade furiosa, pois o comércio local e administração ficava a 3 km, o que era considerado distante à época. Houve rumor que tal fato seria uma retaliação do empreendedor ao fato de não ser eleito como vereador. Fecha parênteses.

Figura 2 Vista da então Quinta do comendador Lage, atual Museu Mariano Procópio, o chamado “pedaço de Éden”, 1870.

O trabalho de Klumb recebeu atenção especial em sua divulgação para outras gerações. Em 1952, por exemplo, uma grande reportagem da Revista O Cruzeiro, escrita por Gustavo Barroso (MHN) o aponta como o primeiro guia turístico do país e destaca em fotografias o Museu Mariano Procópio e a Mazeppa, diligência utilizada no percurso. Ao longo das páginas da revista, Barroso sintetiza a descrição das estações e cita trechos originais, na tentativa de demonstrar sua importância e originalidade. Pedro Vasquez, muitos anos depois, assinala o ineditismo de uma obra planejada, redigida e editada por um fotógrafo no século XIX, considerado por ele um dos melhores do seu tempo.

Após reler todo o guia com atenção, fiquei ainda com mais vontade de refazer este trajeto nos trechos remanescentes da União e Indústria. De fato, há imagens que reconheço, outras não, muita coisa destruída com o tempo. Essa era a proposta da expedição União e Indústria, que de última hora foi cancelada pela UERJ no ano passado, causando muita frustração nos participantes. Lembro com carinho e esperança do projeto do Prof. Mário Chagas de construir um Museu Estrada União e Indústria, com engajamento de vários pesquisadores e atores políticos. Por razões de várias ordens, essa diligência ainda não acelerou, mas certamente algum dia virá a galope, com passageiros cheios de ideias, sonhos e memórias.

Confesso, leitores/as, que este texto também foi escrito a galope e, portanto, merecerá uma continuidade. Siga conosco.

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Divulgação do projeto de pós-doutorado “Olhos de Ver”, desenvolvido no PROARQ/UFRJ sob supervisão da Profa. Dra. Ceça Guimaraens, financiado pelo CNPQ.

PARA SABER MAIS:

Há várias edições digitalizadas disponíveis na internet, mas eu gosto dessa do Setor de Obras Raras da Biblioteca Nacional, que tem a capa marmorizada e já é impressa. http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_obrasraras/or1379801/or1379801.htm). O Museu Imperial publicou também uma edição no Anuário de 1995 https://museuimperial.museus.gov.br/wp-content/uploads/2020/09/1995-Vol.-44.pdf , mas sem a parte traduzida em francês e com uma tipografia atualizada, por exemplo. Sim, o guia era bilíngue, um luxo! Este exemplar fazia parte originalmente da Biblioteca do Castelo D’Eu. Agora, para ver mesmo a delicadeza da obra, essa digitalização da versão manuscrita de 1870 do Arquivo Histórico do Museu Histórico Nacional é sensacional, proveniente do Paço de São Cristóvão: http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=mhn&pagfis=71764. É também por ela que conseguimos perceber o diminuto tamanho do guia, literalmente de bolso (16 x 12cm). Um detalhe importante: as imagens são ordenadas diferentes em cada edição.

O texto “A insuspeita grandeza de um livro de bolso”, de Pedro Afonso Vasquez, detalha a história da fotografia e a originalidade da produção de Klumb, considerado pelo autor um dos melhores fotógrafos do Brasil Império. Vasquez também organizou o “Álbum da Estrada União e Indústria”, em 1997, com todas as vistas originais de Klumb. Disponível em: https://antigo.bn.gov.br/sites/default/files/documentos/miscelanea/2021/cadbn11_miolo_final_24-10_1-compactado_compressed_1_1-7673.pdf. Acesso em 10 abr 2023.

O artigo “A vida social da diligência Mazzepa” de Mario Chagas e Claudia Storino, é sensacional .Está disponível aqui? https://anaismhn.museus.gov.br/index.php/amhn/issue/view/50

Recentemente, Daniela Santor escreveu o verbete “Doze horas em diligência” no livro “100 objetos do Museu Histórico Nacional (1922-2022)”. Disponível em: https://drive.museus.gov.br/index.php/s/B2atn59L13PZnOs

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