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Como meu cachorro me leva a pensar sobre minha humanidade

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por José Neves Bittencourt

São mais ou menos 6:30 de uma manhã de sábado. No dia anterior, voltei de uma longa viagem de trabalho, que incluiu visitas a sítios arqueológicos no meio do nada e uma palestra em que tentei, mais uma vez, o impossível: desromantizar um tema e lançá-lo no caldeirão de um debate, digamos, científico. Claro, por um lado quebrei as costas e, por outro,a cara. Paciência – vida de pesquisador é em grande medida, assim mesmo.

Mas hoje, pretendia dormir, quem sabe, até às oito-e-meia… Vã esperança! Meu cachorro, o Joie, lambe-me o rosto e toca o terror dentro do quarto, como faz todos os dias: o “café da manhã canino” não pode atrasar. Assim, lá vou eu, aos trancos e barrancos, servir uma generosa porção de ração ao saltitante canídeo, um filhote decanis lupusfamiliaris (desde Lineu, em 1758) ou (para os menos versados em ciência), “cachorrinho” “filhotinho” (apesar de pesar uns quinze quilos) ou “vira-lata”, que é a “raça” dele; ou a “não-raça”, já que o veterinário insiste em registrá-lo,“sem raça definida”, ou “S.R.D”.

Enquanto o Joie devora o café da manhã, ocorre-me, sei lá o motivo, uma notícia que li poucos dias atrás, sobre os problemas que uma matilha de cães “sem-dono” estaria criando nos arredores da cidade portuguesa de Setúbal. A “matilha” teria uns dezessete “indivíduos”, ou seja, cachorros. Parece que estaria atacando “colônias de gatos” locais (eu nem sabia que gatos formariam “colônias”…) bem como pequenos animais “da natureza”. Ué… E os cachorros não são?

Sim e não. Joie, meu “SRD”, tem sua matilha, mas dificilmente pode ser chamado de “animal da natureza”.– e aí está uma demonstração da ambiguidade do termo “matilha”: eu e Lúcia somos a dele, pequena, doméstica, calorosa, mas ainda assim, “matilha”. Mas de jeito nenhum “da natureza”.

Nossos cachorros são uma das inumeráveis provas de como, no perene processo de construção de nossa humanidade – que persistirá enquanto existirmos –, construímos e reconstruímos a natureza que nos deu origem. Cerca de 100 mil anos atrás, segundo nos mostra o “registro fóssil”, na Ásia, uma espécie de lobo já bastante comum na época, o lobo-cinzento (canis lupus) se aproximou de grupos de outra espécie de animal, nome binomial homo sapiens, (nome vernacular, “homem”) para recolher restos alimentares abandonados por eles. Os lobos-cinzentos estavam um pouco acima do homem na cadeia alimentar, mas perceberam que seria mais fácil, ao invés de comê-los, recolher seus restos alimentares.

O “homo sapiens” já havia, naquele momento, completado o processo de “hominização”: morfologicamente já era quase o que somos hoje. Bípedes que viviam sobre o solo, utilizavam os membros anteriores como vetor da maior parte das tarefas que constituem sua rotina. As extremidades desses membros eram constituídas como na maioria dos mamíferos, com cinco dedos. Mas, como apenas alguns mamíferos (primatas, principalmente), tinham uma estrutura nos membros dianteiros que neles permitia uma vantagem. O primeiro dedo, chamado “polegar opositor” lhes permitia manipular coisas –frutas e animais comestíveis, acender fogueiras, manipular lascas de rocha e madeira – com notável destreza e precisão.

Isso porque os homens já tinham uma estrutura cerebral em que o neocortex (ou “córtex neocortical”), região do cérebro encontrada nos mamíferos, notavelmente desenvolvida. A evolução os vinha trabalhando nessa direção, de modo que se tornaram primatas absolutamente particulares.Neles emergiram funções cognitivas altamente complexas, como, por exemplo, a autoconsciência, a percepção, a linguagem, e principalmente (pelo menos do ponto de vista dos lobos e de outros animais, que passaram a caçar) a criação de “extensões” altamente complexas e eficientes para seus membros superiores: os artefatos.

Os lobos ganhavam em força física, velocidade, agilidade e destreza em combate (e ainda ganham, hoje em dia). Mas de vez em quando, os homens se saiam melhor, devido ao uso daquelas “extensões” dos membros (que muitos milhares de anos depois seriam chamadas “armas”). Mas havia outra coisa: atuavam em grupos, de forma coordenada. Isso os lobos até conseguiam fazer, pois também eram “animais sociais”. Mas os homens mudavam rapidamente de padrão de atuação, caso a opção anterior não funcionasse – fugir, por exemplo –, caso a caçada “desse ruim”. Tudo bem, isso os lobos também faziam, só que com muito maior dificuldade. O que os lobos não conseguiam fazer era rapidamente, transmitir a decisão ao resto do grupo.

Nossos cachorros descendem dos lobos-cinzentos. Eles se aproximaram de nós, e nós os convencemos a ficar. Desde então, foi uma questão de evolução. A seleção natural levou alguns milhares de anos (o que na escala geológica, nem é tanto tempo) para muda-lhes a genética até nos colocar em sua cadeia de DNA e fazê-los deixar de querer nos comer. Claro que o instinto ainda está lá no Joie e em todos os outros animais domesticados. Nos cães, o DNA ainda os faz lembrar o tempo em que viviam em alcateias, e que tentar liderar a alcateia estava em seu DNA. Isto explica certos comportamentos agressivos dos cachorros, ou o impulso deles em comer tudo o que puderem (e outros ainda mais irritantes, como urinar pela casa). Veterinários, treinadores e outros especialistas sabem como lidar com isso; nós que os temos como parte da família, não.

Tudo isso me ocorre enquanto olho meu “filhotão” devorar seu “café da manhã”. Passados 100 mil anos, eu e Lúcia cuidamos dele como se fosse nossa cria e, para além, ele consegue crescer, virar adulto, se reproduzir e morrer assim: formando conosco uma “matilha”. Nós três nos beneficiamos dos séculos em que a humanidade aprendeu a domesticação. Aprendemos inclusive como “dar uma ajuda” à evolução dos cães, misturando raças e estendendo características físicas e comportamentos. O resultado é a diversidade de raças caninas, cada uma adequada a uma função que explora alguma de suas maravilhosas capacidades.

Tudo isso os coloca no interminável processo de construção de nós mesmos. Está em nosso DNA tentar domar a natureza, coisa que às vezes dá certo e outras, não. Mas não custa tentar: por exemplo, impedir a extinção de espécies animais e vegetais ou trazer outras das profundas da morte. Ou ainda como o esforço de domar a nós mesmos, como no caso da “matilha selvagem” de Setúbal, que atraiu a atenção da imprensa em função do debate sobre direitos dos animais levantado na cidade. Este é um debate que precisa ser travado com urgência.

A mim agrada sobretudo colocar os cachorros na linha dos “Estudos de Cultura material”, que pratico como carreira. O Joie é um artefato? Bom, essa é uma questão mais cabeluda, e por ora prefiro não provocar aqueles que, como eu e minha esposa, amam seus cachorros. Posso adiantar que James Deetz, autor que está sempre em minha cabeceira, diria que sim. Eu, por ora, me contento em pensar na possibilidade que muita coisa que vemos “natural” seja, de fato, produto dasintermináveis artes que compõem nossa humanidade.

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