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Da tortura de uns ao conforto de outros… reflexões para desconfortar

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Por Aline Montenegro Magalhães

 

Em 18 de maio de 2020, Dia internacional dos museus daquele ano, ocupei este espaço para abordar a exposição dos instrumentos de tortura do Museu Histórico Nacional (MHN), na seção “riqueza e escravidão” do circuito de longa duração. Volto ao assunto aqui para compartilhar os incômodos que esses objetos, apresentados em profusão em museus e outros espaços de memória, provocam. Principalmente, por serem, ainda muitas vezes, a única referência à experiência afrodiaspórica no passado representado nesses lugares.

A presença desses objetos em exposições de museus, em decoração de restaurantes em cidades como Ouro Preto e usados como ornamento de senzalas cenográficas em fazendas do Vale do Paraíba, pode ser entendida pelas lentes do que Cida Bento define como “Pacto da branquitude”. Segundo a autora, trata-se de um “pacto narcísico que, embora lembre a escravidão e os males que ela causou, esquece os responsáveis por esse sistema e quem foi beneficiado por ele”. Assim, os instrumentos de tortura provocam comoção nos visitantes, mas principalmente, certo conforto por dizer respeito a um passado distante.  Afinal não há mais escravos e aqueles instrumentos não são mais usados, não é? Será?

O silenciamento em relação a quem usava esses ferros e paus para viol(ent)ar os corpos dos escravizados, barões, viscondes e outros nobiliarcados, enaltecidos em retratos a óleo e louças brasonadas, é acompanhado da exaltação à Princesa Isabel, pelo aparente fim daqueles tempos sofridos e sombrios do cativeiro. É a branquitude a se eximir da responsabilidade sobre a escravidão e querendo o protagonismo sobre Abolição. Além de invisibilizar a agência de escravizados, livres e libertos em quilombos, revoltas e tantas outras formas de resistência e lutas anti-escravistas, subalterniza a população negra em uma relação de gratidão e dependência, segundo a qual estaremos sempre devendo, a esperar e agradecer a benevolência alheia. E os instrumentos, muitas vezes estetizados, seguem a nos ameaçar, pois quando nos sobrepomos ao controle que tentam impor sobre nossos corpos, somos punidos, fisica ou simbolicamente.

Entre os objetos que compõem a coleção de instrumentos de tortura que os senhores usavam sobre os corpos dos escravizados, encontra-se um tronco de madeira com orifícios para prender três pessoas pelo pescoço e pulsos. Entrou no Museu Histórico Nacional em 1929, por meio da doação do Coronel Porfírio Costa Ribeiro, após solicitação de Gustavo Barroso, diretor da instituição à época. Três anos depois, Barroso escreveu um artigo no jornal Correio da Manhã e fez referência ao objeto:

“o velho tronco de aroeira que meu bisavô […] transformaria em banco do seu alpendre e eu traria para o Museu [Histórico Nacional]. Meus olhos voltam-se, assim, para dentro, para o meu microcosmo, a perscrutar minha própria alma… E, como uma quaresmeira se cobre de flores violetas, eu floreio em saudades da minha infância e da minha adolescência na terra nordestina, mãe de prodígios”.

A transformação de um instrumento de torturar escravizados em objeto de conforto da casa grande diz muito sobre como a nossa sociedade lida com a violência do período escravista, que segue a nos assolar até hoje. E os museus, seguiam essa tônica de pacificação promovendo uma  acomodação desses instrumentos como relíquias de uma passado distante. Barroso, por exemplo, não fala que seu bisavô torturou escravizados com o tronco, apenas informa que o transformou em um banco. Um objeto que lembra o sofrimento de uns desperta “floreios” de saudades em outros.

Esse tipo de postura inscrita na exposição dos objetos de tortura nega a violência desse passado no nosso presente, que segue ferindo e matando a população negra do nosso país. É como se a branquitude literalmente sentasse  sobre as feridas abertas, e ali se acomodasse confortavelmente, seguindo sua rotina de exploração e manutenção de seus priviléigios. A banalização é tanta, que em 2016, o design de um móvel de uma coleção intitulada “Quilombo dos Palmares”, recebeu o nome “Tronco dos escravos”, em Maceió. A experiência de liberdade e resistência dos quilombos foi aprisionada em um tronco. O mesmo se deu com a estampa do tecido de uma loja famosa que reproduziu cenas da escravidão como se fosse algo muito “cult”. 

A exposição “Brasil decolonial: outras histórias” realizou três intervenções na sessão de instrumentos de tortura do MHN para levantar quem segue sentado no banco. Uma, foi a inserção de um trecho da petição da escravizada Esperança Garcia que, em 1770, denunciava os maus tratos que sofria do feitor e reivindicava a transferência para a fazenda onde pudesse ficar com sua família. A segunda consistiu em novas legendas para cada instrumento de tortura, lembrando que alguns, como algemas e correntes são usados até os dias de hoje. A última foi o vídeo apresentando manchetes de jornais e revistas que noticiam crimes contra a população negra, entre as quais o assassinato de Marielle Franco, em 2018. As manchetes são projetadas ao som da música “Voz bandeira” de Marina Íris e por ela cantada. 

Em primeiro plano, o tronco que virou banco. À esquerda, a televisão com a projeção do vídeo “Violência, racismo e discriminação: colonialidade em curso”. Acima o trecho da petição de Esperança Garcia. À direita a nova legenda dos instrumentos de tortura.
Foto: Bel Palmeira

As imagens do vídeo nos dilaceram, mas a “Voz Bandeira” de Íris nos fortalece como resistência e potência transformadora a nos impulsionar a seguir “berrando” e não esperar “viver a regra que define o que é normal”, denunciando e “transcendendo o habitual”.

 

 

E que bom que os museus de história, além do MHN estão atentos e ativos a repensar suas exposições e produzir outras histórias afrodiaspóricas. O Museu da Inconfidência, por exemplo, promoveu um debate ontem, “Este objeto. O que ele nos fala? Os objetos museológicos e a trivialização da escravidão”. Participei a convite do professor Marcelo Abreu da UFOP, ao lado do diretor, Alex Calheiros, da historiadora e atriz Sidnéa Santos e do artista multimídia Toni Baptiste. O objeto em questão é um tronco de prender pessoas escravizadas, que integra a exposição sobre mineração no museu.  O evento iniciou uma série de discussões que vai embasar as mudanças na expografia do museu de Ouro Preto.

Já o Museu Paulista da USP, além de não expor mais sua coleção de instrumentos de tortura, tem promovido pesquisas e eventos que procuram produzir conhecimento e divulgar o seu acervo sobre a história africana e afrobrasileira em São Paulo. Partindo da identificação de uma senhora retratada em uma das obras de Adrien Van Emelen, D. Adelaide Antônia das Dores, a Vovó do Pito, chegamos à presença da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de São Paulo no museu. Vovó do Pito nasceu em Sorocaba como escravizada. Foi liberta e se casou com um homem que morreu em combate na Guerra do Paraguai. Migrou para São Paulo onde trabalhou como cozinheira e empregada doméstica. Vivia no Largo do Paissandu e cuidava do altar de São Benedito na Igreja do Rosário dos Homens Pretos. Sua história inspirou o “Encontro Irmandades negras e(m) museus” que será realizado no próximo dia 17, no Museu do Ipiranga, em São Paulo e no dia 18 no Museu Republicano de Itu, em Itu. Serão dois dias para se pensar a presença, muitas vezes invisibilizada, das Irmandades negras na história contada pelos museus. Solange Palazzi, da Irmandade de N. Sra. do Rosário dos Pretos de Ouro Preto, por exemplo participará falando da coleção preservada no Museu Histórico Nacional.

O evento, que é realizado em parceria com a Irmandade de N. Sra. dos Pretos de São Paulo e com o apoio do Observatório Negro dos Museus e da Museologia, está imperdível!

A mudança de perspectiva a respeito desses objetos e suas representações tem sido um caminho potente e ético para se lidar com memórias traumáticas. Quem sabe assim, as pessoas passem a se sentir desconfortáveis para tirar fotos simulando o açoite em reproduções de pelourinhos de centros históricos, como o de Mariana? Ou para se imaginar no século XIX em carruagens e fazendas de café, servidas por pessoas escravizadas, como se fosse um tempo melhor para se viver?

 

Comentário

  1. Excelente texto! Parabéns pela forma simples como tratou um assunto tão delicado, nos instigando visitação à museus e “ambientes de memória” não somente como espaço de observação, mas também como formas de reflexão!

    1. Obrigada, André. Que as reflexões suscitadas em museus possam contribuir para mudança de posturas e erradicação do racismo e da violência contra o povo negro. Abraçossss