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O que pode um mergulho pelas memórias de um colonizador?

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por Sofia Alexandre Carvalho

Era a última aula da disciplina “Escritas da história e presença afrodiaspórica em museus” ministrada pela professora Aline Montenegro Magalhães. Estávamos numa visita pela exposição “Coletar: imagens e objetos” no Museu do Ipiranga. O ritmo da visita era calmo, familiar. Havia um vagar de quem quer aproveitar o momento. Aconchego. Sabíamos que em breve estes encontros semanais iam acabar. A dado momento, olho em redor. Fico presa em espanto a olhar para a parede da sala do lado.

Vista para a sala “Os retratos de Van Emelen”, no Museu do Ipiranga. Fotografia da autora

Afastei-me um pouco do grupo e entrei na sala. Fui invadida por uma vontade de chorar sem ainda saber porquê. Primeiro o corpo sente, depois a cabeça tenta atribuir sentido. Tento ler o texto de parede para perceber um pouco mais sobre estas obras, e, neste gesto, tentar perceber: “porque estou a sentir tudo isto?”. Aperto.

Sala “Os retratos de Van Emelen” no Museu do Ipiranga. Fotografia: Sofia Carvalho

O restante grupo aproxima-se da sala. Sentamo-nos no chão. A professora Aline vai falando sobre as obras. Trata-se da coleção de Elisiário Dupas, composta por obras que ele comprou e encomendou ao pintor belga Adrien Henri Vital van Emelen (1868-1943). A professora diz-nos que decoravam a sua casa pessoal. São 33 retratos de pessoas pobres e marginalizadas pela elite. Entre os retratados constam pessoas negras, indígenas e caipiras. As obras datam das décadas de 1930 e 1940. Nenhuma das obras apresentava, originalmente, a identificação das pessoas representadas. Poucas tinham título. Está em curso uma pesquisa que visa saber quem foram estas pessoas.

Foi ao ouvir este relato que estremeci. Imaginar estes rostos existirem nas paredes da casa de uma família branca e burguesa do século XX – e, possivelmente, durante o século XXI, uma vez que a coleção foi doada em 2010 por Juacy Dupas, filha do colecionador. De repente, fui assaltada pela imagem da casa em que cresci. Vergonha. Estremeci de novo. Cresci numa casa em que esses mesmos rostos existiram pendurados. Eu podia olhar para eles. Mas eles não podiam olhar para mim. Poder. Eu podia ver. Embora fossem outros rostos, representados de outras formas e através de outros suportes, cresci numa casa repleta de objetos que pretendiam representar o “outro” colonizado.

Importa aqui dar um contexto importante: entro nesta pequena sala do Museu do Ipiranga enquanto pessoa branca, portuguesa, europeia, com um contexto familiar trespassado pelo projeto colonial português.

Costumo dizer que cresci numa casa repleta de objetos que, se estivessem num museu, seriam classificados como objetos etnográficos. Um dos meus avós foi ex-combatente na guerra colonial portuguesa (1961-1974) tendo, durante este período, acumulado às suas funções de militar, a missão de evangelizar as populações locais. Foi alguém que passou longos anos em diferentes países então colonizados por Portugal, deixando seus filhos e esposa na metrópole. De todas as vezes que voltava para Portugal trazia com ele uma enorme quantidade e variedade de objetos provenientes destes territórios e que vieram a compor a casa em que cresci: máscaras de povos africanos, pequenos animais empalhados, fotografias de animais mortos depois de caçadas, esculturas e objetos decorativos feitos de madeiras africanas como pau-preto (mpingo), porcelanas chinesas adquiridas em territórios asiáticos colonizados por Portugal durante este período, e outros objetos que representavam pessoas não-brancas, em particular, pessoas negras.

Esta é a minha ancestralidade. Direta e indiretamente sou filha e herdeira do colonizador. É com esta bagagem que entro na sala da coleção Dupas. Culpa.

A psicóloga Cida Bento (2022) demonstra como a branquitude é uma relação de dominação que assenta num pacto narcísico entre brancos. Uma aliança tão silenciosa quanto poderosa na manutenção de privilégios. Através deste pacto, a branquitude consegue promover um esquecimento coletivo (entre brancos) de recordações que trazem sofrimento e vergonha face aos atos de violência e desumanidade que os seus antepassados cometeram contra populações não- brancas. Além de encobrir a violência dos antepassados, neste processo, a branquitude encobre também os impactos positivos que a herança escravocrata e colonial acarretou para os brancos; impactos estes plenamente usufruídos pelas populações brancas na contemporaneidade.

Ao entrar na sala da coleção Dupas fui confrontada com recordações silenciadas. Fui confrontada com esta casa na qual cresci e que já não existe, recordações deste homem que pouco conheci, recordações desta história colonial que ainda hoje Portugal enche a boca para dizer que foi excecionalmente branda, reduzindo-a a um “encontro de culturas”. Uma narrativa que alimenta a ideia de que Portugal não é um país racista.

Ao entrar na sala da coleção Dupas senti e reconheci a vergonha dos feitos dos meus antepassados. Mataste quando lá estiveste? Estupraste? Quantos? Quantas? Quem eram? Quais os seus nomes? O que faziam? Quem amavam? Foi um momento de desvelamento do pacto narcísico. Aquela casa em que cresci, com todos aqueles objetos, funcionava simultaneamente como um processo de manutenção da branquitude e como manifestação tangível desse mesmo processo. Poderemos nós pensar os museus nos mesmos termos?

Ao crescer naquela casa, sem que ninguém tivesse de o verbalizar, fui percebendo – de forma muito difusa e confusa – de que eu fazia parte de uma história maior que ligava a minha família a África. Mas que ligação era esta? O silêncio sobre esta história familiar (colonial) era tão falada quanto silenciada. Falava-se do que o meu avô trazia. Falava-se das histórias que ele contava no seu regresso. Falava-se de uma forma glorificadora, hiperbolizada, mitificada deste homem branco que andava sozinho por uma vegetação “exótica”, que interagia de forma excecionalmente benevolente (condescendente) com os negros que lá viviam, que procurava ajudá-los (civilizá-los, evangelizá-los), e que eles o respeitavam muito (paternalismo).

Mas se esta história era (re)contada vezes sem conta, o pacto de silêncio sobre o que estava subjacente a esta história era potente e eficaz. Nunca ouvi falar de guerra. Nunca ouvi falar de violência. Nunca ouvi falar de abuso. Nunca ouvi falar de dominação. Porque foste tu para África? Para que países? O que chega até mim é vago, confuso, incoerente. Por que terras andaste? Que histórias deixaste enterradas lá? Quantos saberes enterraste junto dessas histórias? Quantas vidas? Os objetos vieram para a metrópole, mas as histórias não. O que vieram foram representações desse “outro” objetificado e, ao ser introduzido em contexto doméstico, esse “outro” objetificado foi literalmente domesticado para conforto voyeurista do branco – tal como o fez Dupas.

De que forma interagir com estes objetos contribuiu para a minha mundivisão colonial? De que forma ao interagir com objetos em museus esta mesma dinâmica ocorre? De que forma estes objetos atuam na manutenção, não só do racismo, mas na manutenção daquilo que o sustenta – a branquitude?

Mergulho nas minhas memórias coloniais.

Revisito a minha história

exorcizo a memória

purgo o silêncio

falo com o meu avô:

deixa-me afogar.

“Herói da Guerra do Paraguai”, Adrien Henri Vital Van Emelen, 1930-1940. Fotografia da autora

Como diz a escritora portuguesa Isabela Figueiredo (2018, p. 180): “não amei o colonialismo, mas não posso evitar ter conhecido a sua mancha”. Chegou a hora de nós – sujeitos brancos e instituições historicamente brancas – assumirmos um compromisso coletivo de identificar, nomear e mapear essa mancha. Os museus podem ajudar-nos nesse processo. Tal como na casa em que cresci, também os museus carregam objetos e narrativas que constroem significados sobre o que é – e como é – lembrado o passado colonial, o que sobre ele é ocultado, deturpado, glorificado. Mas ao contrário da minha casa, os museus têm a responsabilidade social de contribuir para uma sociedade mais equitativa. Reparações.

Reparações começam com reconhecimento, como nos mostra Grada Kilomba (2019, p. 43-46). Mas para haver reconhecimento há que ultrapassar o medo. É ele que dificulta e adia este inevitável mergulho no nosso passado colonial. Se nós não mergulhamos por vontade própria, alguém nos vai empurrar para a piscina. Vão eles finalmente descobrir o que nós fizemos? Vamos nós? O que vamos nós pensar dos nossos avós? Mas lembremo-nos das palavras de Conceição Evaristo (2021, p. 113), e ganhemos alento. Mergulhemos.

Só temos o medo

só o medo

o medo de sermos corajosos.

De sermos medrosos

também o medo.

Conceição Evaristo, “Só o medo”

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Para saber mais:

BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

CARDINA, M. O atrito da memória: colonialismo, guerra e descolonização no Portugal contemporâneo. Lisboa: Tinta-da-China, 2023.

EVARISTO, C. Poemas da recordação: e outros movimentos. 6ª ed. Rio de Janeiro: Malê, 2021.

FIGUEIREDO, I. Caderno de memórias coloniais. São Paulo: Todavia, 2015.

HENRIQUES, J. G. Racismo no país dos brancos costumes. Lisboa: Tinta- da-China, 2018.

IBIRAPITANGA, e SCHUCMAN, L. V. Branquitude: diálogos sobre racismo e antirracismo. São Paulo: Fósforo, 2023.

KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

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