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A PROPOSTA MUSEOGRÁFICA DO MUSEU DA MARÉ

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por Cláudia Rose Ribeiro da Silva

Desde o início da concepção do Museu, o diálogo, a valorização da diversidade, as trocas de saberes e fazeres alicerçam todas as ações empreendidas pelos agentes sociais que atuam na construção e manutenção desse espaço cultural da cidade. O Museu é um espaço aberto às ações desenvolvidas pela comunidade e por grupos e pessoas de outras localidades. Atualmente, os projetos desenvolvidos atendem cerca de 400 pessoas. As escolas públicas do entorno são as principais parceiras do Museu.

O eixo central dos projetos desenvolvidos pelo Museu é a sua exposição de longa duração Os Tempos da Maré, que já recebeu mais de 50 mil visitantes. Na exposição tudo é mutável. Passado, presente e futuro convivem nos “tempos” da água, da casa, da migração, do trabalho etc. São 12 temas apresentados como em um grande calendário cuja museografia foi construída a partir da realidade local. Os temas foram escolhidos respeitando-se os percursos históricos e afetivos da Maré. Mas, ao mesmo tempo, eles são temas arquétipos, pois dialogam com as mais diferentes realidades. Criança, fé, medo, são temas primordiais presentes em toda a trajetória humana.

O acervo da exposição de longa duração é fruto de pesquisas realizadas em arquivos públicos da cidade e de doações feitas por moradores que, além de objetos pessoais, também concedem depoimentos de suas histórias de vida. Os objetos e imagens são expostos em grandes painéis. O conjunto valoriza cada peça e faz homenagem às manifestações populares trazendo o colorido dos Cordões de Carnaval, Folia de Reis, Maracatu, Cortejos etc. O mais interessante é a resposta dada pela comunidade, que se entusiasma com a ideia de se vê representada no Museu e de se expressar para a cidade por meio de tal narrativa museográfica.

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Ao entrar na exposição de longa duração, o visitante encontra um grande painel cor de laranja com o texto de boas-vindas. A cor faz referência ao local de origem da maioria dos primeiros moradores da Maré. Eles vieram do interior de vários estados do Nordeste brasileiro, regiões áridas e secas, em sua maioria. O laranja lembra a terra e o barro daqueles lugares. Logo em seguida, à esquerda da exposição, o visitante pode perceber o espaço de memória da fábrica, lembrando que o imóvel, antes de ser museu, foi uma fábrica da indústria naval, onde eram produzidas peças para navios.

Mais à frente, o visitante se depara com o primeiro módulo da exposição chamado de Tempo da Água. Os diferentes tons de azul são uma alusão à Baía de Guanabara. Este primeiro módulo expõe as transformações ocorridas na Baía, desde a década de 1920, e os impactos no meio ambiente provocados pelas grandes obras realizadas pelo poder público: construção da avenida Brasil (1946); aterros que integraram 8 ilhas, criando a ilha do Fundão para abrigar a Universidade Federal do Rio de Janeiro (1953); instalação da Refinaria de Petróleo de Manguinhos (1954); Projeto Rio, que aterrou parte da Baía de Guanabara e criou novas comunidades no território da Maré (1980).

A narrativa expográfica apresentada no Tempo da Água revela os impactos negativos sobre a Baía de Guanabara das intervenções empreendidas pelo poder público ao longo de várias décadas, e principalmente a construção da Refinaria de Manguinhos, revelando a fragilidade de inúmeros discursos conservadores, que culpabilizam os moradores pela poluição das águas da Baía.

O objeto de destaque no Tempo da Água é o rola-rola: utensílio produzido pelos moradores, a partir de um barril de madeira e restos de pneu, que era utilizado para carregar água, pois as casas não possuíam água encanada.

Em seguida, o visitante encontra o Tempo da Migração. Este módulo expositivo faz homenagem aos nordestinos que, a partir da década de 1940, migraram para o Rio de Janeiro com o objetivo de trabalhar nas grandes obras que estavam acontecendo na cidade, principalmente a construção da Avenida Brasil. Aqui, algumas paredes com vários objetos do dia a dia das famílias nordestinas reproduzem a técnica de construção antiga chamada de pau a pique, que entrelaçava madeiras (geralmente bambus) fixadas ao chão, com outras colocadas na posição horizontal e amarradas entre si por cipós, formando um grande painel cujos vãos eram preenchidos com barro.

Neste módulo, o destaque são as garrafas, com diferentes formas e tamanhos, que contêm terras das cidades natais dos primeiros nordestinos que vieram para a Maré. Mas também, as garrafas são um convite para que os visitantes do Museu, independentemente de serem nordestinos, doem terras de suas cidades natais para compor a exposição.

O próximo módulo expositivo recebeu o nome de Tempo da Casa. Nele, a peça principal é o barraco sobre palafitas construído em tamanho natural. Por meio de uma escada, o visitante tem acesso ao interior do barraco, onde é reproduzida a forma como muitas pessoas viveram na Maré, entre as décadas de 1950 e 1980.

Presentes em todos os continentes, principalmente nas zonas tropicais do planeta, as palafitas são construções utilizadas em regiões alagadiças. Na Maré, elas foram construídas pelos moradores sobre as águas da Baía de Guanabara. Durante a década de 1980, os barracos foram removidos pelo governo federal para a realização do Projeto Rio, que aterrou grande área da Baía e promoveu a construção de casas populares para aqueles que moravam sobre as palafitas.

Após sair do barraco, o visitante encontra dois tempos dispostos um de frente para o outro: Tempo do Trabalho e Tempo da Resistência. A narrativa expográfica destes módulos propõe a reflexão sobre a importância do trabalho e da resistência para a permanente construção do território da Maré. As imagens deste espaço estão relacionadas às lutas contra as ameaças de remoção e violência policial. Também podemos ver fotografias de mutirões de trabalhadores construindo casas, as redes elétricas e os sistemas de água e esgoto.

O destaque deste tempo é o gravador (de áudio analógico) utilizado pelas lideranças das associações de moradores para registrar os discursos dos políticos cobrar, posteriormente, a realização de tudo o que tinha sido prometido pelo poder público.

No sexto módulo da exposição, o visitante entra no Tempo da Festa. A construção diária do território da Maré não seria possível sem o trabalho e a resistência de seus moradores. Mas, com certeza, a festa é elemento inseparável da luta daqueles que constroem este lugar. Sem a possibilidade de celebrar as conquistas coletivas e individuais, de grupos e famílias, seria impossível pensar a Maré! Neste módulo, várias fotografias de diferentes épocas retratam a importância das festas e do lazer para as pessoas que moram aqui.

O objeto que se destaca no Tempo da Festa é a bandeira do bloco carnavalesco Mataram Meu Gato. Hoje, o bloco é uma escola de samba e sua sede está localizada na comunidade da Nova Holanda.

Ao chegar neste ponto do percurso expositivo, o visitante é convidado a conhecer o Tempo da Feira. Existem feiras livres em quase todas as 17 comunidades que formam a Favela da Maré. As feiras são lugares onde os moradores compram produtos mais frescos e, muitas vezes, mais baratos do que nos supermercados. Mas também, elas são espaços de geração de renda, de encontro e convívio entre as pessoas.

Aqui, destacamos as balanças antigas, que utilizavam pesos de metal, bem diferentes das balanças digitais atuais. Também estão neste módulo quatro instalações relacionadas a atividades comerciais de moradores, que doaram objetos pessoais utilizados em seus ofícios: senhor Atanásio, alfaiate; senhor Bento, sapateiro; senhor Joaquim e senhor Antônio, barbeiros. A família do senhor Francisco nos doou os objetos de sua tendinha (pequeno comércio). Seu Francisco, avô da vereadora Marielle Franco, era nordestino e morava na Baixa do Sapateiro, onde criou sua família. Ele costumava vender fiado e, muitas vezes, “esquecia” de cobrar das pessoas que passavam por dificuldades financeiras. Nesta instalação, estão expostas algumas anotações daquelas dívidas nunca cobradas.

Em seguida, o visitante entra no Tempo do Cotidiano, que faz referência às mudanças que ocorreram durante o processo de ocupação do território e que foram, gradualmente, transformando a Maré. Atualmente, quase todas as casas são feitas de tijolos (alvenaria), que substituíram as construções de madeira. A proposta do Tempo do Cotidiano é conduzir o visitante pelos becos e ruas estreitas das comunidades, para que ele observe as fachadas das casas, suas portas e janelas. Por isso, neste módulo, uma parede foi erguida de forma irregular, tendo seus tijolos à mostra, com portas e janelas abertas, seguindo as referências das construções locais.

No módulo do Tempo da Fé há um espaço reservado às religiões de matriz africana. Este espaço possui maiores referências da Umbanda (religião nascida no Brasil, no final do século XIX, que sincretiza elementos das religiões cristãs, indígenas e africanas). Os terreiros onde essas religiões são praticadas quase não existem mais na Maré e em outras favelas do Rio. Por isso, este módulo também simboliza a resistência das pessoas pelo direito de manterem seus lugares de culto.

Ainda no Tempo da Fé, vemos um grande painel, que mistura as mais diversas manifestações da religiosidade dos moradores da Maré e da cidade do Rio de janeiro. O visitante é levado a olhar para o alto, como em sinal de reverência.

No piso deste espaço, estão colocados o barco e a imagem de São Pedro, o santo padroeiro dos pescadores, sempre presente nas antigas procissões marítimas, realizadas na região antes dos aterros. Os dois objetos foram doados pela família Jaqueta, que tinha a tradição do trabalho na atividade da pesca.

No Tempo da Criança, os brinquedos e as brincadeiras estão presentes nos objetos e no texto colorido e lúdico. As vitrines foram colocadas no piso, fazendo referência às várias brincadeiras que são praticadas no chão, como o jogo de bola de gude e a amarelinha. Algumas fotografias estão delicadamente fixadas abaixo da linha de visão dos adultos, levando o visitante a observar o espaço pelo olhar da criança.

No 11º módulo, o visitante encontra o Tempo do Medo, onde é levado a confrontar-se com vários medos que nos intimidam. A solidão, a doença, o desemprego são alguns medos que fazem parte da vida de todos nós. Mas, para quem morava nos barracos sobre palafitas, outros medos também estavam bem presentes no dia a dia: a fome, a tempestade, a maré que subia à noite, os ratos que invadiam a casa e atacavam as crianças, a remoção das moradias. Mais recentemente, existe o medo da violência, da bala perdida, das guerras do tráfico, das operações policiais, da morte bruta e sem sentido.

O destaque no Tempo do Medo é o painel produzido por adolescentes, que passaram por um processo de formação no Museu. Este painel é formado por moldes feitos de gesso onde estão impressas as marcas de tiros que atingem as paredes, os muros, os postes e as casas de tantos moradores.

No Museu da Maré, o medo não tem a última palavra. Por isso, a exposição de longa duração Os Tempos da Maré termina com o módulo do Tempo do Futuro. Neste tempo, passado, presente, futuro se misturam. O que ainda não é, um dia se transformará em realidade. Mas isto só acontecerá se respeitarmos as lutas, as conquistas dos moradores e suas memórias, que resistem ao esquecimento. O futuro é construído a partir do hoje, do trabalho, da coragem, do engajamento, do diálogo e da tolerância. O amanhã está presente em nossa luta diária pela conquista de políticas públicas comprometidas com a proteção da vida. No Museu da Maré o Tempo do futuro já começou e pode ser transformado por meio de nossas ações. Por isso, este último módulo é reservado às exposições temporárias. As parcerias e projetos que o Museu desenvolve possibilitam a instalação de nova exposição a cada período, propondo instalações e ambientações criativas e questionadoras sobre temas variados, alterando constantemente o módulo do Tempo do Futuro.

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