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Escritas do terreiro, cruzos de memórias

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Por Carina Martins Costa

Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje” 

Peço licença a toda ancestralidade para escrever meu texto de hoje, com as palavras de ontem. Esse texto foi escrito em duas fases temporais muito distintas e marca, com sua publicação, a refundação do blog, que por razões que desconfio não serem totalmente terrenas, ficou imobilizado por mais de seis meses.

Como mulher branca e criada em uma família nuclear sem prática religiosa,  fui conhecer o candomblé muito tardiamente, nas pegadas do meu irmão capoeirista Angola, que traziam as do Mestre Jogo de Dentro e as de sua linhagem. “Mandinga de escravo em ânsia de liberdade, seu princípio não tem método e seu fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista” (Mestre Pastinha).

A partir daí, por diversas encruzilhadas, as tradições afro-brasileiras entraram em minha vida como experiência, aprendizado, conexão e inspiração, gerando profundo respeito. E com elas, rodopios epistemológicos: exuzilhadas de Cidinha Campos; pedagogia das encruzilhadas, de Luiz Rufino; crônicas exuzíacas com Simas. São mestres que inspiram a repensar a vida e, portanto, nossa relação com o tempo, com os ancestrais, com os não-humanos e com a linguagem.

Em dezembro de 2023, no 6º Simpósio Científico do ICOMOS- Brasil, em Juiz de Fora, ouvi a apresentação da Tanira Fontoura sobre o Memorial de Mãe Menininha do Gantois e senti um arrepio percorrer todo meu corpo com sua presença. Fui conversar com ela sobre o livro infantil “Àwon Ona Jagun”, que traz narrativas sobre a Mãe Carmen de Òsàgiyán, pois tenho pesquisado há muitos anos materiais pedagógicos de museus e espaços de memória. Generosamente, ela me enviou dois livros produzidos pelo Memorial.

Ilê Ìyá Omin Àsé Ìyámasé, conhecido como Terreiro de Gantois, foi fundado em 1849 em Salvador (BA) e tombado pelo IPHAN como patrimônio histórico e etnográfico do Brasil em 2002. O Memorial de Mãe Menininha foi inaugurado em 1992 e a partir dele foram produzidas as obras.

Os livros me produziram encantamento e surpresa. Muitos fios se cruzam ali. Planejei, então, que seria meu primeiro texto do ano, mas outras pedras se cruzaram por aqui e só agora volto a ele.

E volto porque há chamados que a gente não pode ignorar. Essa semana vi o documentário “Espaço Além” sobre a viagem da artista performática sérvia Marina Abramovic no Brasil, lançado em 2016. É possível acompanhá-la por uma jornada de cura e, em uma das cenas, pude ver a imagem do Abebé de Oxum resplandecer em seu colo. Inacreditável: ela trazia o mesmo livro que eu havia recebido com a seleta do acervo de Mãe Menininha.

Cena do documentário “Espaço Além”, com Marina Abramovic, 2016. Direção: Marco del Fiol

Peço licença mais uma vez a toda ancestralidade para voltar ao texto cinco meses depois. A primeira página do livro aponta que Exu é o guardião do memorial. Èsù otùtojù ohun iránti, em yorubá. O catálogo é trilíngue, é bom destacar: um impulso de tecer comunicação, atravessar culturas e oceanos.

Retomo impactada por outros cruzos despertados pela potente coleção do Memorial de Mãe Menininha do Gantois. Ao ler a inspiradora monografia de Fernanda de Sousa, intitulada “Vestuário de africanos/as e afrobrasileiros/as no Rio de Janeiro, século XIX” (Arqueologia, UERJ), refleti sobre a importância de ter um livro sobre a coleção do Gantois. Ali pude conhecer uma diversidade de panos de costa (alaká), fios de conta e adornos variados, costurados com memória e linguagem, que nenhum trabalho da ampla bibliografia da pesquisadora deu conta de apresentar.

Ele foi publicado em 2010 como parte de uma série “Patrimônio e História” da coleção Gantois, organizada por Raul Lody, referência para os estudos afrobrasileiros em museus, como parte da comemoração do jubileu de 161 anos de fundação do terreiro, 18 anos da idealização do Memorial e 8 anos da posse da Iyalorixá Carmen Oliveira da Silva. É um livro que atravessa celebrações e temporalidades, mas aponta para a permanência por seu intuito de preservar, como também para a mudança, no convite que faz ao/à leitor/a de cruzar fronteiras da clássica divisão objeto/ sujeito e rodopiar por outras formas de pensar a materialidade e sua agência.

De acordo com Lody, “trata-se de uma publicação que visa a informar, socializar e apoiar os movimentos em prol do desenvolvimento de políticas que facilitem o acesso à história dos espaços sagrados da religiosidade do Candomblé (…)” (p.13). Em um momento em que o racismo religioso machuca e fere pessoas, terreiros e objetos, o livro é um assentamento de saberes. (Ver Jaime Lauriano).

São 215 páginas em papel couchê, impressão colorida e fino acabamento gráfico. O design aponta para o movimento, com ondas nas bordas inferiores que trazem desenhos como peixinhos e versos sobre os orixás que parecem brincar com as imagens principais. Vejo, por exemplo, uma fotografia de uma porcelana europeia de bailarina branca com detalhes em dourado, sem legenda, com o Oriki* navegando a página: “Oxum káre: aos que são de casa, digam que cheguei. As profundezas da água têm sinais de nobreza. Bronze nas mãos, bronze nos pés”.

Seleta do acervo. Memorial Mãe Menininha do Gantois, 2010, p. 104.

Em que medida um olhar sobre a coleção pessoal de Mãe Menininha permite promover os cruzos necessários para interpretar esse objeto, sem cair no argumento de ladinização? Aprendo ali que os objetos pessoais da Iyalorixá Menininha do Gantois se referem à Oxum, orixá das águas doces, da riqueza e da beleza. Daí a delicadeza da porcelana e o douramento fazem outro sentido. Posso também perceber o refinamento de coleções de louças, que podem estar inseridas no trânsito de dádivas e contra-dádivas que circulam um terreiro. E os leques, tão diversos e delicados, que podem ser aproximados ao imaginário de Oxum e seu abebé.

Como, por meio da coleção, podemos acionar uma percepção do sagrado em suas múltiplas facetas? Em que medida os museus estão abertos a dialogar com os orixás e suas expressões e redes de agenciamento?

Os saberes-fazer dos objetos e suas matérias primas que evocam orixás específicos. O vocabulário que atravessa nossas tipologias. A beleza que resplandece a cada página. O conhecimento ancestral que permite aproximar de um universo de encantamento, poder e criação. Simas diz que cada tambor é uma biblioteca. Este livro, então, é cheio de toques, sons e ritmos. Contribui a nós, imersos em culturas de esquecimento, nos embriagarmos, de corpo e alma, em culturas de lembranças.

Um enorme agradecimento a todos/as envolvidos/as na produção do Memorial e da Selecta, que fazem a gente pensar em uma museologia viva, atenta aos direitos culturais e à função social de saberes. Obrigada Tanira por sua generosidade.

“A encruzilhada para mim é o destino, a gente tem que chegar na encruzilhada”. (Luiz Simas)

Consideramos aberta a nova temporada do blog. Que promovamos encruzilhadas. E nossa logo não é isso?

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VOCABULÁRIO

*Orikis- “versos ou poemas de exaltação da personalidade do orixá, referindo-se a sua origem, características e qualidades” (p.21)

PARA SABER MAIS

  • A referência do catálogo é:

SILVA, Carmen Oliveira de. Memorial Mãe Menininha de Gantois. Salvador: Ed. Omar G, 2010.

Faça contato para adquiri-lo. Endereço eletrônico memorialmaemenininha@gmail.com. Instagram: @terreirodogantois; @tanirafontoura; @lpg15_13_memoriagantois e @lpg16_23_memoriagantois.

 

 

  • Entrevista realizada por Cristiane Nascimento com o historiador Luiz Simas, disponível em: https://revistacm.memoriadaeletricidade.com.br/post?id=120. Fiquei com vontade de reproduzir mais um cadinho do Simas: “Gosto de trabalhar com a ideia das “culturas de fresta” exatamente por causa disso. Você imagina que o Brasil oficial é um projeto de muro, de desencanto, de concreto, de dureza, mas esse muro tem rachaduras onde você vai praticando a vida, não só como resistência, mas também como invenção constante de mundo”. A seleta como invenção de uma forma de comunicar.

 

  • O artigo de Márcia Santanna “Escravidão no Brasil: os terreiros de candomblé e a resistência Cultural dos Povos Negros” é um importante esforço de historicizar políticas públicas. Foi publicado pelo próprio IPHAN. Disponível em: <http://www.dominiopublico.com.br/download/>. Acesso em: 11 de set. 2024.

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