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“Era um sonho dantesco, o tombadilho…” Os sítios de naufrágios de embarcações escravagistas

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por Luciana Bozzo Alves

 

O poema “O Navio Negreiro”, escrito no século XIX por Castro Alves, expõe o terror infligido a mais de 12 milhões de pessoas africanas raptadas de suas casas e obrigadas a cruzar a Calunga Grande – como é chamado o Oceano Atlântico, em referência ao grande número de corpos negros que repousam ali – para servirem de força de trabalho escravizada nas Américas. Embora os números sejam imprecisos — tanto em relação ao total de pessoas raptadas quanto ao número de viagens e naufrágios, por exemplo — eles evidenciam a crueldade e a brutalidade de um sistema que visava, especificamente, o enriquecimento dos países europeus. Com isso, essas embarcações consolidaram-se como os grandes “instrumentos da escravidão”, e, de acordo com Marcus Rediker (2011), era no interior dessas embarcações que o “tráfico se tornava real”. 

De acordo com estimativas disponíveis no site do Slave Voyages, entre 1501 e 1866, em torno de doze milhões de pessoas originárias de África foram traficadas para as Américas. Esse imenso contingente atravessou a Calunga Grande em mais de 35.000 viagens, resultando, sem dúvida, em um grande número de naufrágios, especialmente durante os anos de ilegalidade do tráfico, entre 1831 e 1850. Nesse período os embarques eram realizados sem qualquer fiscalização, e na maioria das vezes a arqueação das embarcações não era respeitada, o que resultava em superlotação aumentando significativamente as chances de naufrágios durante as travessias. Essas embarcações ficavam mais vulneráveis a acidentes devido às condições climáticas adversas, à superlotação,à precariedade dos instrumentos de navegação e a possíveis falhas de manobras e decisões equivocadas. Além disso, é necessário considerar as dinâmicas e estratégias de resistência exercidas por essas pessoas no interior dessas embarcações durante a travessia da Calunga Grande.

Ainda que tenham sido utilizadas por mais de três séculos, foi durante as campanhas abolicionistas no final do século XVIII e durante grande parte do século XIX que as referências a essas embarcações foram exaustivamente exploradas. Isso se deu principalmente por desenhos, tendo sido também utilizado um modelo tridimensional produzido em madeira (Slaveship Brooks), por exemplo, que o parlamentar inglês William Wilberforce utiliza durante suas investidas junto aos políticos na Inglaterra no final do século XVIII. A figura a seguir exibe a maquete atribuída a Wilberforce.

Figura 1. Modelo utilizado por William Wilberforce.(Disponível em https://understandingslavery.com/artefact/model-of-the-brookes-slave-ship/, acessado em 9 de novembro de 2024).

A reprodução dos desenhos do navio Brooks se estendeu por regiões extensas, primeiro por várias da Grã-Bretanha e, posteriormente, pelo mundo inteiro. Esses desenhos serviram como um instrumento para expor as condições sub-humanas a que foram impostas pessoas em diáspora transportadas para fins de escravização. Embora uma das estratégias das militâncias antiescravistas tenha sido sensibilizar os políticos — inicialmente visando à abolição do tráfico de escravizados e, mais tarde, a própria escravidão —, isso acabou gerando uma visão cristalizada sobre as embarcações utilizadas no tráfico e parte de seus arranjos internos.

Essas embarcações são mais do que simples meios de transporte, pois se tornaram símbolos de opressão e violência: representam uma parte fundamental da história da escravidão e suas consequências duradouras. Este ensaio sobrevoa a relevância dessas embarcações como artefatos históricos, principalmente a partir de pesquisas arqueológicas sobre os destroços em sítios de naufrágios.

Embora a Arqueologia, ao longo de sua história, tenha como foco a cultura material, quando pensamos nos destroços dessas embarcações os caminhos devem ser outros. E ao longo dessas pesquisas, as abordagens teóricas e metodológicas foram se adaptando e ganhando novo corpus. Isso se aplica, principalmente, ao engajamento d@s pesquisador@s com esses destroços, considerando-as como uma oportunidade na constante luta pela reparação desse crime. Partimos então para a utilização dessas materialidades com ferramentas potentes, considerando imprescindível que as pesquisas sejam colaborativas e simétricas.

Pesquisas arqueológicas preocupadas, somente ou principalmente, com a arquitetura naval e suas técnicas construtivas não fazem sentido e não justificam a emersão dessas materialidades e de suas memórias. Os propósitos dessas pesquisas devem abarcar os impactos sobre as pessoas traficadas e os reflexos dessa diáspora e todas as suas consequências na contemporaneidade. A localização, identificação e caracterização de materialidades dessas embarcações naufragadas devem ser revisitadas e emergidas somente para fortalecer a identidade cultural de comunidades negras, que guardam, ou não, proximidade geográfica com esses locais. A figura abaixo foi extraída do site da UNESCO e, ainda que exiba uma embarcação, destaca as pessoas que foram traficadas.

Sylvie Serprix (disponível em https://courier.unesco.org/en/latest, acessado em 30 de setembro de 2024)

Ainda são incipientes os estudos sobre os sítios de naufrágios de embarcações utilizadas no tráfico de escravizados que foram ou estão sendo alvo de pesquisas arqueológicas. Essa situação se deve a diversos fatores, entre os quais se destacam a escassez de documentos históricos que contenham informações sobre naufrágios e suas localizações aproximadas, além da dificuldade em identificar elementos específicos nos destroços que indiquem sua utilização no tráfico. Essas embarcações são as mais difíceis de identificar devido à necessidade de reconhecer detalhes construtivos e possíveis arranjos internos associados ao transporte de pessoas em condições de escravização, como escotilhas gradeadas e grande quantidade de lastro, por exemplo. Poucas embarcações foram e têm sido alvo de pesquisas arqueológicas, considerando diversos graus de aprofundamento e, como exemplo, podemos apontar a Fragata Fredensborg (Noruega), o Bergatim Trouvadore (ilhas Turcas e Caicos – localizadas no Oceano Atlântico, ao sul das Bahamas e ao leste de Cuba, em um território ultramarino do Reino Unido), o Veleiro São José Paquete África (África do Sul) e o Brigue Camargo (Brasil).

Diouf (2019), se referindo aos destroços atribuídos a Escuna Clotilda, intencionalmente afundada em Africatown, aponta que essas evidências são apenas um “símbolo vergonhoso da base do desenvolvimento econômico”, nesse caso, dos Estados Unidos.

Ao direcionar as discussões para a cultura material como componente desse legado dos crimes perpetrados contra os povos em diáspora, destacamos a importância da Arqueologia na análise dos destroços de embarcações que faziam parte das rotas do tráfico marítimo. Ao reconhecer sua responsabilidade em relação ao presente, a Arqueologia pode possibilitar a materialização de um espaço de diálogo entre a memória social das comunidades descendentes desses povos e as pesquisas arqueológicas e históricas. 

Mas, o que essas materialidades realmente podem significar? Quais reflexões podemos fazer a partir dessa categoria de evidências? Podemos falar de resistência, resiliência, transgressão? As tenebrosas configurações dessas embarcações e o tratamento desumano dispensado as pessoas traficadas têm sido, ao longo do tempo, contados e recontados, exaurindo nossa capacidade de assimilação dessas imagens, cristalizando-as em nosso imaginário. No entanto, ainda que a propagação dessas informações tenham se avolumado significativamente durante as campanhas abolicionistas, acabaram por provocar um certo “congelamento” em nossas mentes sobre as estéticas dessas embarcações.

Nesse sentido, levantamos a seguinte questão: como as pesquisas arqueológicas nos destroços dessas embarcações podem contribuir para a construção de outras narrativas relacionadas as populações negras? Elas não podem apenas fortalecer um discurso que coloca milhões de pessoas em diáspora, que atravessaram a Calunga Grande nessas embarcações, como coadjuvantes. É necessário cautela ao fazer essas memórias emergirem junto com as materialidades, pois compreender o patrimônio resultante dos processos de diáspora, particularmente aqueles que afloram das práticas violentas do colonialismo, transcende a análise acadêmica e a perspectiva fria que reduz corpos negros a meros números, dados históricos ou estatísticas. Essa visão, que muitas vezes resulta na espetacularização do sofrimento e na exposição dos corpos negros vitimados, reflete um incômodo movimento coletivo, em que o sofrimento alheio se torna espetáculo, alimentado, de maneira consciente ou inconsciente.

A partir de então, as materialidades resultantes dos naufrágios de dezenas/centenas de embarcações escravagistas só fazem sentido de serem escavadas e trazidas à superfície se puderem servir como instrumentos eficazes na constante luta por reparação histórica das mazelas infligidas a nossos ancestrais e antepassados.

Antes de perguntar se queremos e podemos escavar essas materialidades e evocar essas memórias, devemos nos questionar se devemos fazê-la. É preciso cuidado para atuar nas frestas da colonialidade, com práticas que necessariamente devem envolver afeto, escuta e partilha. Consideramos que as reflexões sobre essas evidências podem fomentar um diálogo entre o passado e o presente, contribuindo no fortalecimento dessas vozes resultantes do processos de diáspora paras as lutas,ainda tão necessárias, contra as injustiças na contemporaneidade.

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Para saber mais:

Calunga grande – grande cemitério marinho, segundo a ancestralidade negra.

Arqueação – é a expressão do tamanho total de uma embarcação.

ALVES, Luciana Bozzo. A Diáspora Africana no litoral Norte paulista: desafios e possibilidades de uma abordagem arqueológica. 2016. Dissertação (Mestrado em Arqueologia). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, MAE/USP, 2016.

HALL, Stuart. Identidade Cultural e diáspora. Comunicação & Cultura. nº. 1, 2006, pp. 21-35.

RAMBELLI, Gilson A vida social entre o céu e o mar: navios negreiros enquanto artefatos da escravidão. In: Camila Agostini (org.). Objetos da escravidão: abordagens sobre a cultura material da escravidão e seu legado. 1ª Edição. Rio de Janeiro: 7Letras, p. 199-219. 2013.

REDIKER, Marcus. O navio negreiro: uma história humana. Tradução deLuciano Vieira Machado. São Paulo: Companhia das Letras. 2011.

__________.Arqueologia de naufrágios e a proposta de estudo de um navio negreiro. Revista de História da Arte e Arqueologia, vol. 6, p. 97-106. 2006. Disponível em <https://www.unicamp.br/chaa/rhaa/revista06.htm>. Acessado em 18 de março de 2013.

__________. Tráfico e navios negreiros: contribuição da Arqueologia Náutica e Subaquática. Revista Navigator: subsídios para a história marítima do Brasil, vol. 2, nº. 4, p. 59-72. 2006. Disponível em: <http://www.revistanavigator.com.br/navig4/art/N4_art4.pdf>.  Acessado em 18 de março de 2013.

SANTOS, Luis Felipe Freire Dantas; MARINS, Júlio César da Silva; RAMBELLI, Gilson. A materialidade do tráfico e os desdobramentos no presente: arqueologia marítima do navio escravagista Camargo, Angra dos Reis. Revista de Arqueologia, [S. l.], vol. 37, nº. 1, p. 98-116, 2024. DOI: 10.24885/sab.v37i1.1156.

VAZ, Lívia Sant’anna. Calunga Grande e tragédias no mar: ou de como somos (des)iguais até na morte. Migalhas. 2023. Disponível em <https://www.migalhas.com.br/coluna/olhares-interseccionais/388826/calunga-grande-e-tragedias-no-mar>. Acessado em 16 de janeiro de 2024.

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