Coleção Zaira Trindade no Museu Histórico Nacional: notas sobre a musealização do sagrado
por Aline Montenegro Magalhães
Foi em 1999 que o Museu Histórico Nacional (MHN) recebeu uma coleção de mais 40 itens, entre objetos e livros, relacionados ao culto do Candomblé, raiz Jeje. A aquisição fazia parte de um projeto institucional de diversificação da representação da religiosidade brasileira no acervo e nas exposições, após o estabelecimento de uma política com essa finalidade, em 1992. Afinal de contas, a Igreja Católica imperava com suas imagens classificadas como Arte Sacra e os vestígios arquitetônicos de edificações demolidas ou restauradas, indícios de um projeto civilizador da colonização que se desejava colecionar como testemunhos, relíquias.
A coleção do sagrado afrodiaspórico do MHN teve uma chegança diferente das formas como objetos de religião de matriz africana costumavam ser integradas aos museus. Não foi via apreensão policial, como é o caso do Nosso Sagrado que estava no Museu da Polícia Civil, no Rio de Janeiro, que foi tombada pelo então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) como coleção Magia Negra, em 1938. Atualmente, a coleção é preservada no Museu da República, em um processo inédito de curadoria compartilhada com os povos de terreiro. Tampouco foi por meio da coleta de folcloristas, antiquários ou etnólogos, que, com medo da extinção desse tipo de culto em função da perseguição institucionalizada, colecionavam esses objetos para fins de estudo e classificação. Um exemplo é um abebé, uma adaga e seis braceletes de composição da indumentária de Oxum, que foram adquiridos pelo MHN oriundos do colecionador e antiquário Francisco Marques dos Santos.
Os objetos sagrados do candomblé do MHN foram doados pela própria praticante da religião, senhora Zaira Trindade. Pouco se sabe a respeito dessa senhora que morava ou, pelo menos, preservava seus objetos de culto em uma casa na Vila Vintém, uma favela na Zona Oeste do Rio de Janeiro, notabilizada nos sambas de enredo da Escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel, que é da comunidade. A documentação museológica dessa coleção restringe-se ao termo formal de doação e à carta de agradecimento, sem informações sobre a doadora, e as razões que mobilizaram sua doação.
São três livros, “Orixás” de Pierre Verger, “Ervas, raízes africanas” de Ornato José da Silva e “Candomblé de Keto” do Babalorixá Ominarê e quatro assentamentos: Oxum, Iemanjá, Obaluaê e Ogum. Além disso, duas indumentárias completas de Iemanjá, chamada Aziri Tobosi na raiz Jeje do Candomblé. Segundo os princípios sagrados, são objetos que deveriam ter sido destruídos ou despachados na natureza diante do desligamento da praticante da religião ou mesmo de sua morte. Mas a opção de Zaira foi entregar ao museu para que fossem preservados. Um indício de que desejava se fazer presente no museu, por meio de seus objetos sagrados, encontra-se numa anotação feita à mão, com caneta esferográfica azul, na xerox de um dos livros que doou, o de Ornato José da Silva. Foi no capítulo dedicado aos “Candomblés Jêje no Brasil”, onde há uma genealogia dos pais de Santo dessa nação, vinda da cidade de Cachoeira, na Bahia. A anotação diz o seguinte: “A sra. Zaira Trindade, doadora das peças ref. ao Candomblé, é bisneta de Zezinho da Boa Viagem”. Este, era filho de Tata Fomotinho, babalorixá da segunda geração dessa linhagem religiosa.
Já no museu, esses objetos ficaram por vinte anos aprisionados em Reserva Técnica. Silenciados, invisibilizados, sem espaço nas exposições. Nos anos de 2016, 2017, essa coleção despertou o interesse de um dos educadores à época, Lucas Cuba, e foi quando ela passou a ser mais conhecida dentro do próprio museu. Mas foi a partir de 2018, após realização de roda de conversa com membros do movimento negro, que essa coleção se tornou alvo de uma investigação mais sistemática, para que pudesse ser exposta. O professor Alexandre Ribeiro Neto, da UERJ, um dos participantes da roda de conversa, deu a ideia de fazermos um Grupo de Trabalho para o estudo desses objetos, no qual participou e para o qual indicou o nome de Rogério Elisiário, Tat’Etu Lengulukenu, Sacerdote de Nação Angola, dirigente espiritual da Inzo Unsaba Ria Inkosse, raiz Kupapa Unsaba, filho de Mam’etu Mabeji. Foi quando iniciamos o trabalho de curadoria compartilhada, aprendendo muito com os ensinamentos dessa liderança espiritual.
Foram dois anos de trabalho intenso, fundamentado nos saberes da religião, respeitando seus princípios e seus segredos… embora a proposta inicial da pesquisa fosse transformar o sagrado em documento, Tat’Etu alertou sobre a impossibilidade dessa transformação. O sagrado estava naqueles objetos e só deixaria de existir se os objetos também deixassem de existir. Mas a dessacralização não era uma condição para a atribuição do valor documental dos objetos, que foi explicitado junto com sua dimensão sagrada. Nos saberes tradicionais religiosos de matriz africana uma coisa não está apartada da outra. Assim, em 2019, a coleção foi exposta no módulo “Cidadania” do circuito de longa duração do MHN. Curadoria e produção de textos de Tat’etu, com explicação desmistificada sobre as religiões de matriz africana numa perspectiva pedagógica contra o racismo religioso, que ainda persegue e vitimiza terreiros e praticantes. Afinal, a constituição não garante a liberdade de culto religioso?
Ao compartilhar essa experiência aqui, faço o convite para que conheçam outras vivências que abordam a presença de objetos sagrados de religiões de matriz africana em museus, participando do “Encontro Terreiros e(m) museus”, que acontecerá nos dias 28 e 29 de novembro no Museu do Ipiranga, em São Paulo e no dia 30, no Museu Republicano Convenção de Itu, conforme a programação. No encontro contaremos com a Conferência de Abertura do professor Reginaldo Prandi e teremos o próprio Tat’etu Lengulukenu falando um pouco sobre sua curadoria no MHN – a quem agradeço muito a parceria de sempre, inclusive na revisão deste texto. Espera-se que este evento contribua para promover e fortalecer parcerias e possibilidades de produção historiográfica afrodiaspórica nos museus, fundamentada em pesquisas interdisciplinares e interinstitucionais, bem como nas práticas de curadoria compartilhada. Espera-se assim, que os museus possam, em sua atividade cotidiana, contribuir para o cumprimento da Lei 11.645/2008, que torna obrigatório o ensino de história e culturas afro-brasileiras e indígenas, combatendo o racismo religioso e as perseguições a terreiros.
Para saber mais:
LENGULUKENU, Tat’etu. Indumentária de Iemanjá. In: MAGALHÃES, Aline Montenegro et. al. Histórias do Brasil: 100 objetos do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2022. p. 416-419.