Skip links

O corpo da peça: cerâmica e memória em Samaipata – Bolívia

Share

por Bianca Elaine Silva

 

Me llamo barro aunque Miguel me llame. 

Barro es mi profesión y mi destino 

que mancha con su lengua cuanto lame. (Poema de Miguel Hernández)

Em tradução livre: Me chamo barro, ainda que me chame Miguel. 

Barro é minha profissão e meu destino 

que mancha com sua língua tudo que lambe.

Em abril de 2024, eu estava fazendo uma escultura em cerâmica, dentro do ateliê do Departamento de Artes Visuais da USP, onde curso o bacharelado em Artes Visuais. 

Ainda não sabia, mas estava prestes a iniciar uma jornada que me levaria à minha primeira viagem internacional em apenas sete meses.

Floristas em frente ao Mercado Velho, em Samaipata – Bolívia. Foto: Acervo pessoal

Entre os ceramistas, é mais comum comprar a argila pronta para uso, já que ela
vem preparada para facilitar a modelagem e dar mais uniformidade nos trabalhos.
Porém, eu vinha sentindo vontade de coletar e preparar meu próprio barro, assim como montar meu próprio forno a lenha e ter autonomia em todo o processo do fazer cerâmico.

Justamente nesse mesmo mês de abril, conheci por acaso a ceramista argentina Lis Moro, que tinha vindo ao Brasil para ensinar a construção do forno a lenha e daria suas primeiras aulas em um local a poucos quilômetros da minha casa.

Com esforço, consegui o dinheiro e tempo livre para as oficinas, e logo no primeiro dia, ela avisou que é uma das organizadoras do Encontro Embarradas para ceramistas, que acontece na cidade onde mora, em Samaipata – Bolívia. O primeiro dia do encontro seria no meu aniversário, então quis fazer todo o possível para realizar a viagem, mesmo tendo dúvidas se conseguiria o dinheiro e o tempo necessários, já que a viagem aconteceria durante o semestre letivo.

Forno construído por Lis Moro em oficina realizada em Cotia. Foto de acervo pessoal

Durante os meses que seguiram, tive a oportunidade de ajudar na construção de mais de um forno a lenha, participar de algumas queimas e conhecer muitos ceramistas especializados em técnicas de construção ancestral, o que aumentou a cada dia minha admiração pelas cerâmicas indígenas do nosso continente, e pelas pessoas determinadas a disseminar suas técnicas.

Assim, me preparei e mobilizei meus amigos e família para me ajudar a realizar a viagem, tendo o apoio das minhas professoras do semestre e também das orientadoras da minha bolsa aqui no Exporvisões, para que eu tivesse tempo disponível para essa experiência.

É importante pontuar que o tema das cerâmicas ancestrais pré-colombianas é incomum no meio de ateliês ceramistas em São Paulo, que geralmente seguem técnicas de cerâmica japonesa de alta temperatura, como o uso do torno cerâmico e a queima atualmente feita em fornos elétricos que atingem temperaturas acima dos 1240º.
Por isso, a minha busca por mais conhecimento fora dessas técnicas vem envolvendo ceramistas de diversos países que tive a oportunidade de conhecer e aprender.

Ao chegar em Samaipata, um povoado pequeno próximo a Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, tirei um dia apenas para visitas. Conheci o Forte de Samaipata, um sítio arqueológico com uma das maiores construções monolíticas das Américas e protegido pela UNESCO. Além da vista incrível das montanhas bolivianas e das ruínas de várias civilizações que ocuparam o forte, notei as diversas placas a respeito da conservação e preservação do patrimônio e destacando a legislação local de proteção, o que chamou minha atenção depois de entrar para a equipe do Exporvisões.

Forte de Samaipata. Vista da construção monolítica e construções adjacentes de vários povos que habitaram a região. Acervo pessoal

Depois disso, tive quatro dias intensos de trabalho e rodas de conversa sobre cerâmica, onde pude escolher entre as oficinas feitas por ceramistas de vários países. 

Aprendi a fazer geotintas usando somente barro e cola de cacto, em seguida fiz um vaso com técnicas de construção e pintura da cultura Shipibo-conibo da Amazônia peruana, também fiz um instrumento de sopro tradicional andino, e por último, participei da construção coletiva de um grande mural em cerâmica, em que muitas pessoas participaram para preparar, desenhar e pintar. 

Ao final de cada dia, nos reuníamos ainda sujos de barro para uma roda de conversa sobre temas como a importância da cerâmica para a arqueologia ou como ferramenta de mudança social.

Oficina de tintas naturais, oferecida por Lis Moro

 

Vaso inspirado em peças tradicionais Shipibo-conipo, sob orientação de Lily Sandoval Panduro

 

Jula julas: instrumento musical andino, sob orientação de Taki Runa

 

Oficina de murais com identidade, oferecida por Mariano Sabes Dato

 

Ao final de uma semana em Samaipata, voltei a São Paulo com peças novas feitas sob o cuidado de mestres ceramistas, além de conexões incríveis e uma bagagem que me fez questionar: como artista e ceramista, qual direção quero tomar com o que produzir? 

Sinto agora, mais que nunca, que quero acrescentar o que puder a esse legado de construção não só de peças ou obras de arte, mas também de construção de identidades não-brancas, e assim honrar os conhecimentos ancestrais de povos cuja identidade é historicamente apagada, mas que esse grupo de pessoas enaltece e acrescenta.

 

“Who we are is defined by what is inside. It’s that spirit that is of interest to me. A cooking pot is there not just to contain nourishment. People have always made beautiful pots to enhance that humanity. People want to eat and cook from beautiful vessels, because all these activities – cooking, prayer, meditation – are associated with the inner part of ourselves.” (Magdalene Odundo)

Em tradução livre: Quem somos é definido pelo que está dentro. É esse espírito que é de meu interesse. Uma panela está lá não só para conter nutrição. Pessoas sempre fizeram lindos potes para enaltecer a humanidade. Pessoas querem comer e cozinhar de belos vasos, porque todas essas atividades – cozinhar, rezar, meditar – estão associadas com a parte interior de nós mesmos.

Para a renomada ceramista queniana Magdalene Odundo em reflexão sobre sua exposição individual no Gardiner Museum, é importante termos um contexto de produção, e para ela é a busca pela forma como as coisas eram feitas no passado e como outros artistas estão indo atrás de questões importantes para eles, de forma contemporânea. 

Concordo com ela, e concluo também que a produção cerâmica é em si um patrimônio imaterial, relevante pela transmissão de conhecimentos e saber-fazer entre comunidades, a exemplo da cerâmica e o fazer cerâmico do Vale do Jequitinhonha, que desde 2019 foi tombado como patrimônio imaterial pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (IEPHA-MG). 

O valor desse patrimônio se estende além do valor material das peças, e traz consigo pertencimento cultural.

PARA SABER MAIS 

 

AS CERAMISTAS E A ARQUEÓLOGA: A ARGILA NA CONSTRUÇÃO DE CORPOS DISTINTOS 

Fuerte de Samaipata – UNESCO

Magdalene Odundo: A Dialogue with Objects

Leave a comment