
Ainda estamos aqui: dentro e fora das prisões políticas
Por Carina Martins Costa
Infelizmente, redijo este post em um clima de preocupação e indignação. Na semana em que um ex-presidente da República, um ex-ministro da Defesa e um ex-Almirante da Marinha, dentre outros, foram indiciados pela Procuradoria Geral por crimes gravíssimos de atentado à democracia e mesmo planos de assassinato dos atuais presidente, vice e ministro do STF, escrevo sobre uma visita a uma exposição sobre o cárcere político na primeira metade do século XX na Espanha. São quase cem anos que nos separam do início do regime franquista (1939-1975), e tudo parece tão atual.
Visitei a exposição Dins i Fora. Paraules preses a la València de postguerra. Col.lecció Rafael Solaz, no Centro Cultural La Nau da Universidade de València, na Espanha. O título é em catalão, uma das línguas da Comunidade Valenciana. Poderíamos traduzir para “Dentro e fora: palavras presas em Valência do pós-guerra. Coleção Rafael Solaz”.
Saí de lá emocionada, com vontade mesmo de chorar, porque parece que esta memória das prisões tão dolorida na história espanhola, que hoje de certa forma sacode as gerações mais jovens no Brasil com o filme “Ainda estou aqui” (2024), esteve muito perto de se tornar novamente uma realidade pela tentativa de golpe de estado no ano passado. Há várias palavras presas na nossa garganta.
É claro que quando penso nisso, também tenho ciência de que a democracia é uma palavra frouxa para milhares de brasileiros/as que são (e continuam) encarcerados por racismo, crimes menores e mesmo injustiças. Não é à toa que o Brasil ocupa hoje o posto de terceira maior população carcerária do mundo, com quase um milhão de pessoas nessa situação. Angela Davis vem nos alertando sobre a ineficácia de uma sociedade punitivista e do encarceramento de massas e o quão isso fortalece justamente a violência e o capitalismo.
Com isso em mente, o encarceramento político é algo que me impacta. Pensar que mulheres como a psiquiatra Nise da Silveira que foram presas por ter livros marxistas na ditadura Vargas, ou Rubem Paiva, barbaramente torturado e executado por apoiar a comunicação de perseguidos políticos, tudo me parece uma brutalidade covarde. Esse projeto de aniquilamento do outro, de apagamento de sua identidade, de tortura do seu corpo e sua mente, de apartamento dos circuitos de subjetificação, é demasiado difícil de entrar em contato. Muitos não sobrevivem para contar… outros não conseguem narrar o trauma… a maioria quer esquecer. Os que viveram dentro, os que viveram fora, os que estão fora do fora, alheios aos muros da prisão: todos somos impactados.
A exposição foi planejada e realizada pela artista Mar Juan Tortosa a partir de um pós-doutorado em artes aplicadas na UV. Em contato com uma coleção bem rara de Rafael Solaz, que encontrou memórias do cárcere de seu pai após sua morte e se dedicou a reunir objetos voltados ao tema, sobretudo os cartões-postais trocados por prisioneiros e suas redes de apoio e afeto, a artista, com o apoio de dois historiadores da Aula de História e Memória Democrática (UV), desenvolveu estratégias distintas para sensibilizar e problematizar a memória das prisões políticas massivas do pós-Guerra Civil Espanhola.

Logo ao entrar, vemos uma reprodução de um escritório franquista, com a máquina de escrever, uma escrivaninha e mesa com periódicos da época. Chama atenção as imagens do General Franco mostrando a implementação dos símbolos e do culto ao ditador.
Na parede oposta, um mapa de Valência localiza o aparato repressivo do pós-guerra com fotos e breve descrição, em uma rede que abarca não somente prisões, mas também edifícios da Igreja Católica, instituições culturais e colégios. É visível, nessa teia construída materialmente, o quanto a cidade e seus arredores foram abalados pelos constantes aprisionamentos. De acordo com a historiadora Mélanie Ibañez Domingo (2025), o encarceramento massivo foi um projeto de poder premeditado e intencional, que explica em parte a duração e manutenção do regime franquista por quase quatro décadas.

Entramos, assim, na sala principal, escura, com focos de luzes nos objetos dispostos em vitrines no chão, que interpelam uma mudança incômoda nos corpos para a leitura e apreensão. Temos que nos desdobrar, sentar, abaixar. É impossível percorrer a exposição sem mobilizar outras estratégias corporais. É impossível normalizar a experiência. Aqui, as caixas acrílicas aprisionam os objetos e o único foco de luz sobre eles incrementa a sensibilização.

Ao olhar para cima, vemos a reprodução de uma cela com 8 metros quadrados, na qual eram aprisionadas dezenas de pessoas em condições insalubres. Os visitantes se acercam, se reúnem para ouvir a paisagem sonora construída em parceria com o arquiteto Alberto Quintana Gallardo. Em vários alto-falantes, escutamos sons, ruídos, vocalizações, códigos do cotidiano prisional franquista. Outro recurso utilizado na exposição foi a reprodução de um vídeo com dados e mais fontes sobre o projeto de encarceramento político no período.
Chama atenção na exposição dos objetos, a ênfase para as palavras submersão e gênero. De fato, uma especial atenção é dada às experiências de gênero na prisão. Objetos femininos nos fazem pensar nos períodos menstruais, na gravidez, no assédio ao corpo, ou seja, nas especificidades de ser mulher encarcerada. Da mesma forma, a ideia de submersão engloba tanto a paisagem sonora como a própria exposição, que visa um mergulho na cotidianidade da repressão franquista. É difícil tomar ar.

O ponto alto, ao meu ver, foi a construção da parede carcerária com dezenas de cartões postais trocadas de dentro e fora. É um diferencial da exposição, já percebido desde o título, focar nas relações, e não na experiência de isolamento. Os cartões-postais, escritos habitualmente tão privados, recuperam ali esse caráter: é preciso se acercar para escutar suas narrações nos fones de ouvido. As interações humanizam, ajudam a refletir sobre o impacto familiar e social do encarceramento político, documentam preocupações, emoções e mesmo distrações cotidianas para o enfrentamento da dura realidade. Letras esmeradas, desenhos, cartões oficiais, selos e carimbos. Evidentemente, censura, apagamentos, interdições. São objetos da cultura material que sensibilizam por serem mediações entre mundos, um fio que projeta tempos e espaços, uma eternização de afeto. Estamos aqui, é o que a maioria deles diz. Ainda estamos aqui, é o que eu digo a eles.