De alma lavada com a Viradouro
por Aline Montenegro Magalhães
O Rio de Janeiro este ano teve o carnaval das águas. Água mineral para beber, uma vez imprópria a da Cedae; a chuva que molhou foliões e deixou a cidade mais fresca; as ondas salgadas de Itapuã e as águas escuras da Lagoa do Abaeté, representadas no magnífico desfile da Unidos do Viradouro, na Marquês de Sapucaí…
Águas que lavaram a alma da bicampeã Escola de Samba de Niterói, que no ano passado amargou o segundo lugar, sem vencer há mais de vinte anos. Lavaram também a alma da gente que vibrou, cantou e requebrou com esse samba cheio de axé, suor e afeto das “ganhadeiras” de Itapuã. Mulheres negras, cuja ancestralidade remete às escravizadas de ganho de finais do XIX, que circulavam por Salvador vendendo serviços e produtos, colorindo as ruas e transformando trabalho em liberdade.
Que samba! Parabéns aos compositores (todos homens!?) Cláudio Russo, Paulo Cesar Feital, Diego Nicolau, Júlio Alves, Dadinho, Rildo Seixas, Manolo, Anderson Lemos e Carlinhos Fionda! Palmas para o intérprete Zé Paulo Sierra e seu coral de apoio (onde também não se ouviu voz feminina!?)! Artistas que, com cadência e carinho, lembraram as ganhadeiras, sua rotina e seu espaço na cidade. A lida para o sustento, as redes de solidariedade com pescadores, que diz respeito também à resistência às tentativas de modernização e embranquecimento de uma área nobre de Salvador, cantada em verso e prosa. Afinal, quem nunca sonhou em passar uma tarde em Itapuã com Toquinho e Vinícius? Ou não percebeu, como Caetano Veloso, que as areias e estrelas do Abaeté não são mais belas do que a mulher das estrelas?
Hoje, as “Ganhadeiras de Itapuã”, formam um grupo artístico que valoriza, salvaguarda e divulga a cultura de gerações e gerações de lavadeiras e quituteiras da região. Suas músicas remetem às cantorias, rezas e cirandas que alegravam os dias de trabalho duro sob o sol ou à sombra de uma angelim, na voz doce e firme de mulheres que mantêm a tradição de suas ancestrais.
ORA YÊ YÊ Ô OXUM, saudação à Orixá das águas que inicia um dos refrões, fez baianas rodarem e muitos se arrepiaram ao ouvi-la na boca do povo que cantava sob o silêncio da bateria do mestre Ciça. Salve Mestre Ciça e suas paradinhas impecáveis! Com as bênçãos de Oxum e das águas da Bahia, hoje tem mais Viradouro na Avenida. E vamos, mais uma vez, lavar a alma!
P.S.1: A título de curiosidade, parece que a Bahia costuma dar sorte às escolas de samba que a têm como enredo. Foi assim em 1969, quando a Salgueiro conquistou o campeonato com o samba “Bahia de todos os deuses”; em 1980, quando a Imperatriz Leopoldinense defendeu “O que é que a Bahia tem?”; em 1986, quando a Mangueira veio com “Caymmi mostra ao mundo o que a Bahia e a Mangueira têm”. A Estação Primeira de Mangueira ainda conquistou o campeonato, em 2016, com o enredo “Maria Bethânia – A Menina dos Olhos de Oyá”.
P.S.2: a título de curiosidade, ainda… ORA YÊ YÊ Ô OXUM está presente nos dois sambas campeões da Viradouro, o de 1997 e o deste ano. E também aparece no samba “Chuê… Chuá. As águas vão rolar, da Mocidade Independente de Padre Miguel de 1991, que também foi campeão.
Fontes: FONSECA, Albenísio. “A Resistência das ‘Ganhadeiras’ na reurbanização de Salvador. Bahia Revista, 26 fev. 2020. Acesso em: https://bahiarevista.home.blog/2020/02/26/a-resistencia-das-ganhadeiras/?fbclid=IwAR3c-gRNx5ncEc6xo7eFBMCIn56VuRvHS8a11oMdTY7jnTZPl5AjzBCqi5g (28/02/2020) VIEIRA, Kauê. As ganhadeiras de Itapoã e a poesia negra do Brasil. AFREAKA. Acesso em: http://www.afreaka.com.br/notas/ganhadeiras-de-itapua-e-poesia-negra-brasil/ (28/02/2020) Site Oficial do G. R. E. S. Unidos do Viradouro http://unidosdoviradouro.com.br/enredo/ AMADEI, Bruno. Resenha do samba enviada por Whatsapp.
Para saber mais SORRENTINO, Harue Tanaka. Articulações pedagógicas no coro das ganhadeiras de Itapuã: um estudo de caso etnográfico.Tese de Doutorado em música. Salvador, PPGMUS/UFBA, 2013.
Lindo texto ???????? Arrepiei
Obrigada Rosângela,
Que possamos ter essas mulheres como referência para nossas lutas cotidianas.
Beijos e obrigada por sua participação.