Tiradentes Esquartejado: a Monalisa do Museu Mariano Procópio
por Carina Martins
Escrevi o título e já não gostei. A ideia de um Museu visitado ou reconhecido por um objeto, seja ele qual for, e que se transforma em ícone ou mercadoria me desagrada muitíssimo. Ela só é potente para dizer que sim, muitas pessoas iriam ao Museu Mariano Procópio somente para ver a tela “Tiradentes Supliciado” (esse é o nome oficial) de Pedro Américo, de 1893.
Tive o prazer de trabalhar no Museu por alguns anos. Iniciei como educadora, em um momento no qual o Setor Educativo estava desativado institucionalmente. Com a transformação do Museu em Fundação, fui convidada pelo então diretor, saudoso Mello Reis, a ser a chefe do Departamento de Difusão Cultural, cargo que exerci com entusiasmo.
Pois bem, um dos maiores desafios era ressignificar o roteiro cronológico e as narrativas do passado do Museu. Um deles, sem dúvida, era mexer com o imexível. Experimenta tirar a tela da exposição, ou propor outras relações com objetos. Confusão! Logo percebi, tanto interna como externamente, que as memórias das pessoas em relação ao museu histórico são mais difíceis de serem mexidas. Eu nunca tentei alterar a expografia sobre Tiradentes, a bem da verdade. Nosso trabalho era focado nas ações educativas, confiante de sua potência para ler a contrapelo. Promovemos cursos com os guias e seguranças sobre esses mitos para possibilitar novas leituras.
Tenho memórias engraçadas sobre essa tela. Uma criança que vomitou ao vê-la; uma professora que fez uma oração; um grupo que chorava compulsivamente; debates calorosos sobre a cabeça estar roxa ou azul ou, ainda, sobre as possíveis rotas dos esguichos de sangue… A equipe já sabia que ali era uma sala para se tomar cuidado com a distância física do quadro, dado às reações incontroláveis que presenciávamos.
A tela é enorme. Ao contrário da pequena Monalisa, estamos falando de uma tela de quase 3 metros de altura. Na internet, as imagens são manipuladas e a maioria parece muito mais brilhante do que o original que tem, garanto, tons mais pastéis.
A imagem nos faz pensar sobre sua produção. Pedro Américo imaginou uma narrativa pictórica sobre Tiradentes em uma sequência de 5 telas. O quadro faz parte desse plano e foi pintado na Itália, onde residia. Consta que em 12 dias estava pronta.
O texto de Aline (Miradas sobre imagens de Tiradentes) explicou sobre a construção do herói republicano. Essa imagem de Tiradentes foi muito disputada. Por isso mesmo, a tela de Pedro Américo não agradou nem um pouco. De tão rechaçada, acabou parando no Museu Mariano Procópio, sorte nossa.
Só um parênteses sobre um dado bastante antirepublicano nessa trajetória de aquisição. O quadro foi comprado pela Câmara Municipal de Juiz de Fora, com a participação do então vereador Alfredo Ferreira Lage. Por coincidência, o colecionador já organizava sua residência tendo em vista a abertura de um museu. Por coincidência, em sua abertura oficial, em 1922, a tela foi doada ao Museu. Preciso falar mais?
Bem, mas por que o quadro não agradou? Esperava-se que o herói fosse inspirador, íntegro, vivo. O pintor optou por estraçalhar seu corpo, evocando ainda elementos cristãos, como a própria forca em formato de cruz e a guirlanda de espinhos. É fácil pensar na própria cabeça de Tiradentes como de Jesus. Para não haver dúvidas, o pintor colocou um crucifixo com a imagem crística ao seu lado. As pessoas viram aquilo como uma imagem de derrota, de fragilidade, de asco. Como assim, despedaçar um herói e mostrar ao público seus pedaços? Um crítico à época publicou que era um verdadeiro “açougue de carne humana”.
A situação ficou difícil para o pintor, que não conseguiu completar a série de imagens, muito menos vendê-la na exposição em uma galeria do Rio de Janeiro. Por isso, expôs em Juiz de Fora, cidade então reconhecida por sua pujança industrial. Já sabemos como ela foi parar no Museu, após sua compra por 8 contos de réis.
A redenção da tela foi muito posterior e sua maciça divulgação envolveu uma relação estreita com fascículos e enciclopédias da Editora Abril, como “Grandes Personagens de nossa História” na década de 1970. Os livros didáticos de História começaram a divulgar a imagem na década de 1980. Vale lembrar que uma lei de 1965 impôs Tiradentes como patrono da nação, já na Ditadura Militar. Eu não sei a experiência de vocês, mas em Minas é quase obrigatória essa imagem. Meus cadernos escolares tinham Tiradentes na contracapa. Na pesquisa de doutorado investiguei as comemorações para esse dia no Museu, outra hora eu conto o que descobri.
Lembrei aqui de uma exposição que fizemos no La Rocca, espaço cultural de Juiz de Fora. Não me lembro o ano, talvez 2007. Imprimimos a pintura em uma lona enorme, que ficava na entrada do espaço. Também colocamos pedaços da tela no chão, para pessoas pisarem na imagem do herói. A ideia foi de um grupo de arquitetos que organizaram o evento, confesso que esqueci o nome do escritório. Foi potente provocar as reações nos visitantes. Naquele momento, mais uma vez, a recepção foi péssima, o que demonstra que deu certo. Reabilitamos sua vocação de repensar os heróis e, com isso, a própria história brasileira.
Infelizmente, desde 2008 o Museu fechou as portas para reformas e, desde então, essa pintura não está exposta ao público local. Nesse período, deu algumas voltinhas por aí. Em 2014, foi exposta na Pinacoteca de São Paulo. Em 2017, no Museu de Arte do Rio. Por aqui, há uma geração de crianças que nunca viram a pintura ao vivo, dada a situação de fechamento total ou parcial da instituição há mais de uma década. É revoltante, não acham?
O debate político contemporâneo com “mitos” e “heróis” parece indicar que essa discussão não acabou. Até quando precisaremos ver as tripas para reconhecer a fragilidade dos mesmos?
Para saber mais
Um cadinho: CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira. O esquartejamento de uma obra: a rejeição ao Tiradentes de Pedro Américo. Locus: Revista De História, 4(2). Acesso em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/locus/article/view/20474.
Um tantão:
CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira (2005). Pintura, história e heróis no século XIX: Pedro Américo e Tiradentes Esquartejado. Campinas (Tese de Doutorado).IFCH – Tese e Dissertação. http://repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/281081?mode=full
Tem muitos textos mas privilegiamos o trabalho da “minha” professora de história da arte, Maraliz Christo (UFJF), que é considerada uma autoridade e ganhou prêmio com sua tese monumental.
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