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Nunca Más!

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por Thaís Alves

 

Há cerca de um ano estive presente no Seminário Internacional 1964 +60 que ocorreu na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). O evento foi organizado pelo Departamento de História em parceria com outras instituições do estado. Foram realizadas diversas mesas e debates entre pesquisadores da área acerca da rememoração do golpe empresarial militar que estava completando 60 anos.
Tive o prazer inenarrável de participar de uma mesa riquíssima sobre História e Jornalismo e a relação dialética entre essas duas áreas na pesquisa sobre a ditadura. O jornalista e autor do livro Marighella – O Guerrilheiro Que Incendiou o Mundo – que, inclusive inspirou o filme dirigido por Wagner Moura em 2019 – Mário Magalhães, ao encerrar sua fala na mesa disse uma frase simples, mas que me deixou muito reflexiva “O esquecimento é amigo da barbárie”. De fato, o cenário que estamos vivenciando não só no Brasil, mas na América latina como um todo é bárbaro. Atentados contra a democracia, ex-presidente se tornando réu por tentativa de golpe de estado, pessoas indo as ruas pedindo por intervenção militar, golpistas suplicando por anistia, revisionistas contestando a ditadura militar… bárbaro.
Mas e a memória? Se partirmos da premissa de que o esquecimento é amigo da barbárie, podemos afirmar que a memória possui um papel antagônico? E o papel do Estado na efetivação de políticas de memória no processo de rompimento com o passado autoritário? Esses foram alguns dos questionamentos que me atormentaram na volta para casa, e sendo bem sincera, eles, de certo modo, ainda se fazem presentes. Com isso convido a todos para que possamos fazer essa reflexão juntos.
Enquanto historiadora/professora em formação, penso muito nos debates teóricos vigentes dentro da academia, sobretudo na UERJ, e como eles se fazem pertinentes nos últimos anos. Há um olhar e um trabalho muito bonito, que vem me chamando atenção, diga-se de passagem, no que diz respeito à análise da história da América latina no tempo presente. Com a ascensão da extrema-direita nos países latino-americanos, mais do que nunca se faz necessário fortalecer o debate em relação ao nosso passado traumático, e principalmente nas tentativas de apagamento dessas memórias.
Apesar do debate sobre direitos humanos e a rememoração do passado autoritário latino-americano estar em alta, pude notar através das leituras de teses para o desenvolvimento do meu projeto, que há uma parcela consideravelmente pequena de pesquisas sobre os museus de memórias traumáticas. Essa parcela se torna ainda menor quando filtramos essa busca a fim de acharmos ações educativas e materiais pedagógicos. O que é extremamente curioso tendo em vista que os Museus de Direitos humanos são um elemento agregador e educativo, sendo também de fundamental importância para o fortalecimento do pensamento crítico. Nos últimos anos, as ações educativas têm buscado reparar as tentativas de apagamento dos crimes políticos e dos atos de violência do Estado ocorridos durante as ditaduras no cone sul.
Atualmente faço parte do projeto de pesquisa Lições das Coisas na América Latina: Boas práticas e insurgências pedagógicas (2010-2022), coordenado pela professora Carina Martins. Através do Ibermuseus, um programa intergovernamental criado em 2007 que promove a cooperação e o fortalecimento dos museus da Iberoamérica, fizemos um mapeamento de todas as ações educativas dos 14 países membros do Programa Ibermuseus e do Banco de boas práticas. O mapeamento contou com cerca de 240 ações. A partir disso iniciamos a criação de uma planilha com as práticas pedagógicas, que foram analisadas e categorizadas de acordo com a proposta, ano em que foi realizada, país e tipo de prêmio.
Enquanto responsável pela análise da categoria de direitos humanos e dever de memória, pude observar a relação entre o crescimento exponencial das políticas públicas nos museus latino-americanos e os governos vigentes durante o período. Destaco Argentina, Uruguai e Brasil, tanto pelo passado ditatorial, quanto pelo trabalho coletivo de seus governos democráticos na construção de espaços museais que visam o fortalecimento da diversidade cultural. Alguns países latino-americanos, como Chile, Argentina, Uruguai e Brasil, revisitam seu passado recente, ligado às ditaduras cívico-militares no século XX.
Houve um aumento considerável de políticas públicas que nos permitem recuperar, de certo modo, os anos de silenciamento dos crimes contra as sociedades latino-americanas. O fortalecimento do compromisso com a memória através de políticas públicas é materializado em memoriais e museus. Destaco aqui o Museu Sítio de Memória – ESMA, antigo Centro Clandestino de Detenção, Tortura e Extermínio da Argentina, hoje incorporado à Lista do Patrimônio Mundial da Organização das Nações Unidas Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Criado com uma nova configuração em 2004 pelo presidente Néstor Kirchner em seu primeiro ano de mandato.

“As coisas devem ser chamadas pelo nome e aqui, se me permitem, não
mais como companheiro e irmão de tantos companheiros e irmãos que
compartilharam esse tempo, mas como Presidente da Nação Argentina
venho pedir perdão em nome do Estado nacional pela vergonha de ter
permanecido em silêncio durante 20 anos de democracia, por tantas
atrocidades”. – Discurso de Néstor Kirchner durante a retirada das fotos dos
perpetradores do genocídio no ex-ESMA em 24 de março de 2004.
Disponível em: 24M Memorial Day: o dia em que Néstor Kirchner
retirou as fotos dos perpetradores do genocídio | IP – Informação
Jornalística

Cristina Kirchner, sucessora de Néstor, seguiu com a mesma responsabilidade e compromisso com a memória nacional. Só no ano de 2012, a Argentina ganhou três prêmios ibermuseus, sendo dois deles sobre a importância da democracia, memória e direitos humanos através de ação educativa centrada na análise dos crimes ocorridos no regime ditatorial. O que nos leva a um dos meus questionamentos no início do texto: o apoio do Estado é essencial nesse processo, já que investir nas instituições museais e comissões da verdade mostra um reconhecimento do passado autoritário e um
rompimento com o legado violento e criminoso, afirmando assim um compromisso com os direitos humanos.
Durante o processo imersivo de mapeamento – que durou cerca de 5 meses – tive a oportunidade de desbravar os materiais e as ações educativas do Museu Sítio de Memória. Gostaria de destacar de forma breve um dos pontos que mais me agrada no site do museu: a interface dinâmica, bem elaborada e resumida que nos possibilita achar tudo com muita facilidade e fluidez. Todos os materiais pedagógicos, resumos de atividades, produção textual e audiovisual estão disponíveis e de fácil acesso. Eles também disponibilizam cursos de formação de professores que podem ser acessados na plataforma virtual INFOD. CURSOS LIVRES – INSTITUTO SUPERIOR DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES Nº 2
Através dessa aventura pelos materiais me deparei com uma série de 3 livros infantis intitulados “La memoria no es un cuento”, que foram elaborados a partir da iniciativa do setor educativo dos espaços de memória e promoção dos direitos humanos de Buenos Aires. As obras são frutos de um concurso iniciado em 2019 que, inicialmente eram voltados para alunos e alunas do 6º e 7º ano e alcançou reconhecimento nacional.

Os livros contam com um trabalho realizado com alunos e alunas de escolas diferentes e apesar de estarem trabalhando com memórias muito difíceis, é surpreendente a potência e a delicadeza dos contos escritos pelos estudantes. E, uma das coisas que devemos nos atentar e que, inclusive é dito no prólogo do primeiro livro, é que durante a elaboração da atividade não se ignorava que os alunos e alunas do 6.º e 7.º ano pertenciam à terceira geração impactada pelo terrorismo de Estado, cada qual de forma distinta e em diferentes intensidades. As crianças envolvidas no trabalho integravam a geração descendente de netos e netas que ainda eram procurados. Gostaria de compartilhar um dos contos que fazem parte do caderninho de atividades e que até hoje me emociona.

-Mamaaaaaaá! Você não sabe o que Lucre me contou. Ele me disse que os tubarões têm medo dos golfinhos quando estão todos juntos. Mas eles ainda os procuram e os comem, não entendo, por que eles fazem isso?
-Olha filha, o que acontece é que quando os golfinhos estão todos juntos eles emitem sons muito poderosos e altos que fazem os tubarões se sentirem ameaçados, então eles os capturam para se sentirem seguros.
Eu nunca entendi a importância das palavras da mamãe até aquele março de 76, quando todas as lindas lembranças desapareceram, assim como ela, me deixando na casa da vovó sem nem me despedir.
Aqueles tubarões se sentiram ameaçados pela minha mãe Delfina e a levaram. Eles a levaram, não sabemos onde ela está. Eles a levaram, porque pensava diferente, porque dizia o que pensava, porque fazia barulho. Minha mãe foi levada.
Proposta de atividade: Depois de ler a história e compartilhar do que se trata: • Quem os tubarões representam e quem os golfinhos do conto?
• Se pensamos em nosso presente, em nosso cotidiano,
Quais poderiam ser os tubarões e quais são os golfinhos atuais?
• No final a história diz: “eles levaram (…) porque fazia barulho, A que se refere? • Que barulho você acha que precisa ser feito agora? Por quê?

O conto aborda de uma forma sutil e de uma maneira muito sensível às memórias traumáticas, sobretudo o modo em que o desaparecimento de sua mãe é descrito, uma das táticas mais cruéis dos regimes ditatoriais. Confesso que fico muito impressionada com o uso da analogia entre o tubarão e o golfinho para se referir os agentes da repressão e os perseguidos políticos – mas, para além disso, a proposta de atividade é visivelmente bem elaborada, dialoga diretamente com o conto e utiliza dele para a formação do pensamento crítico ao trazer as questões para o presente. Afinal de contas, ainda temos tubarões à solta ameaçando aqueles que ousam fazer barulho.
Me encaminho para conclusão, mas antes gostaria de expressar meu pesar a respeito dos últimos acontecimentos na Argentina. Em janeiro deste ano, o governo do presidente de extrema-direita Javier Milei fechou o Centro Cultural da Memória Haroldo Conti. Criado em 2008, o espaço pertencia ao ex-ESMA e detinha o nome de um do escritor Haroldo Conti, que foi um dentre os 30,000 mil mortos e desaparecidos pelo regime. Não há como esperar políticas de memória de um governo que relativiza o número de mortos e desaparecidos, passamos por isso aqui no Brasil em um passado muito recente. Se antes tínhamos um governo que comemorava o golpe e exaltava os torturadores, hoje temos um governo omisso. Acredito que todos nós ficamos extasiados com a promessa feita pelo governo Lula de finalmente termos um Museu da Memória e Direitos humanos, até que ela foi revogada antes mesmo de iniciar.
Concluo esse texto pensando no título dos livros: “A memória não é um conto”. De fato, a memória não é estática, nem ficcional, a memória é subjetiva e se move a partir das experiências, sejam elas com objetos, de forma afetiva ou simbólica. A memória, ou melhor dizendo memória(s) – pois são plurais – são vivas e emergentes, pois conectam passado, presente e futuro. As memórias tampouco são antagonistas do esquecimento, e aqui me permito parafrasear Ulpiano Meneses “Ora, memória e esquecimento são faces do mesmo processo”, mas devemos nos preocupar com quem decide o que deve ser lembrado e o que deve ser esquecido. O apagamento repressivo é perigoso, esse sim nos leva à barbárie. Dito isso, trabalhar com a memória é um processo ativo e reflexivo, no qual as pessoas se conectam com sua história coletiva. Logo, fazer memória não é resgatar uma lembrança, mas se entender enquanto parte de uma trajetória histórica coletiva. Cito Ricœur quando ele afirma que recordar es recordar con los otros.
E que neste mês em especial em que o golpe empresarial militar completa 61 anos possamos todos recordar juntos. Lembrar para jamais nos esquecermos:
Ditadura Nunca Mais!

BIBLIOGRAFIA:
24M Memorial Day: o dia em que Néstor Kirchner retirou as fotos dos perpetradores do genocídio | IP – Informação Jornalística
MENeses, Ulpiano T. Bezerra de. Os museus e as ambiguidades da memória: a memória traumática. In: 10º Encontro Paulista de Museus – Memorial da América Latina, 18 jul. 2018.
Museu do Sítio de Memória da ESMA é Patrimônio da Humanidade: uma grande conquista para a memória ibero-americana | Notícias | Ibermuseus
LMNEUC CUADERNILLO 2
libro_la_memoria_no_es_un_cuento_0.pdf
O Lugar – Espaço da Memória

Sobre a autora: Thaís Alves
Carioca, Graduanda em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), integra o projeto “Lições das Coisas na América Latina: Boas práticas e insurgências pedagógicas (2010-2022)”. Seus interesses de pesquisa estão voltados para a História da América Latina no tempo presente, com ênfase nas relações entre direitos humanos, dever de memória e ações educativas desenvolvidas em museus.

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