
A Coleção Cândido Figueiredo do MHN
por Maria Isabel Ribeiro Lenzi
O Museu Histórico Nacional preserva em seu Arquivo Histórico uma coleção que contempla tanto a memória do teatro nacional quanto a memória de uma loja de tecidos. O leitor deve perguntar: Como assim?
Explicamos. É uma coleção constituída por um comerciante de tecidos que, por gostar muito de teatro, apoiou diversas produções teatrais fornecendo tecidos para os figurinos. Em troca, os produtores divulgavam um anúncio de sua loja nos programas das peças.
Cândido dos Santos Figueiredo (Rio de Janeiro, 31/12/1917- Rio de Janeiro, 10/3/2014) foi comerciante no Rio de Janeiro, tendo trabalhado ao longo da vida em diferentes lojas de tecidos. Filho de portugueses, passou a infância em São Cristóvão e Mesão Frio (Portugal), tendo completado apenas o ensino primário e, logo em seguida, começado a trabalhar. Começou fazendo embrulhos e entregas na Casa Barbosa Freitas, grande loja de tecidos e artigos variados, no Centro do Rio de Janeiro e, posteriormente, com filial em Copacabana. Ali, passou à função de vendedor e, mais tarde, gerente. Vendeu panos para Carmem Miranda e, numa ocasião, a acompanhou à casa da modista para que esta desse o veredito final sobre o melhor tecido para o feitio escolhido.

No início da década de 1960, deixou a Barbosa Freitas para abrir com sócios a Bel-Fil, loja que veio a apoiar o teatro carioca fornecendo tecidos para os figurinos.
A coleção espelha o sucesso da loja de tecidos e o gosto pelo teatro de seu sócio, Cândido. Os primeiros programas remontam à década de 1940, quando ainda muito jovem o comerciante já frequentava os teatros cariocas. Mas é da década de 1960 que provêm a maior parte dos documentos, pois, no auge de seu faturamento, a loja apoiava diversas peças teatrais. Em 1970, a Bel-Fil foi à falência pois os tapumes da obra do Metrô do Rio de Janeiro escondiam as portas de loja na rua Uruguaiana, no centro da cidade. Os clientes assim foram ficando cada vez mais escassos. Isso se reflete na coleção. Nas décadas de 1970 e 1980 diminui o número de programas, muitos agora sem o patrocínio da Bel-Fil. Estes, como aqueles das décadas de 1940 e 1950, nos contam que o Sr. Cândido ia assistir ao espetáculo por puro prazer, sem nenhum vínculo com a produção. Ademais, a existência desses programas dos anos 70 e 80 aponta para uma certa recuperação financeira do comerciante que havia falido. Mesmo com a falência da loja, ele continuava a frequentar os teatros.

A Coleção Cândido Figueiredo possui 240 documentos e está dividida em quatro séries: comédia (117 documentos), drama (54 documentos), musical (46 documentos), infantil (8 documentos) e diversos (15 documentos).
Vamos agora discorrer um pouquinho sobre um desses documentos:
No dia 11 de dezembro de 1964, estreou um musical no Rio que seria um marco na história da MPB: a peça Opinião. O espetáculo é o encontro da música feita no subúrbio, no campo e na Zona Sul da cidade, tendo como estrelas Nara Leão, Zé Keti e João do Vale. O programa desta peça é mais que um programa – podemos considerá-lo um documento histórico que nos remete à resposta política de artistas e intelectuais de procedências diversas ao golpe que havia pouco tirara o presidente João Goulart do poder. Especulamos que aquele espetáculo trazia o germe do que viria a ser a Música Popular Brasileira, de protesto, nos anos de chumbo. Segundo Marcos Napolitano, foi “a primeira resposta cultural de esquerda ao golpe de 1964”.
A direção do espetáculo ficou a cargo de Augusto Boal, que fazia parte do Teatro de Arena de São Paulo. O roteiro era de Armando Costa, Augusto Boal, Oduvaldo Vianna Filho e Paulo Pontes. Os músicos João Jorge Vargas, na bateria, e Dori Caymmi, no violão, acompanhavam os protagonistas em suas falas e canções.
O show Opinião representava uma visão político-cultural de intelectuais e artistas de esquerda, muitas vezes oriundos do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC da UNE). Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, e Augusto Boal eram do Teatro de Arena de São Paulo, reduto artístico da esquerda engajada paulista, que também contribuiu para concepção do espetáculo. Isso justifica a capa do programa com duas partes de um círculo, uma da Arena, outra do Opinião.

Nara Leão não pôde permanecer até o final da temporada e, para substituí-la, foram buscar uma jovem cantora em Salvador. Maria Bethânia, aos 18 anos, imortalizou a canção “Carcará”, de João do Valle, que a tornou conhecida também fora da Bahia. O sucesso do espetáculo rendeu longa temporada e um LP do show.
No programa, os artistas se apresentam com suas próprias palavras. Contam curiosidades de suas vidas, por exemplo, Zé Keti nos diz que seu apelido Kéti, vem do fato de ele ser quietinho, um menino comportado. Trocou o “Q” pelo “K”, porque era tempo de Kennedy, Kruschev e Kubitscheck… Com a entrada de Maria Bethânia, foi acrescentado um encarte com sua foto e palavras: “…nós somos um grupo – jovens cantores, compositores, músicos. Queremos fazer na Bahia o que se faz em todo o Brasil – cantar nossas filosofias e nossas esperanças.” Por sorte, o Sr. Cândido Figueiredo assistiu a versão do espetáculo com a Maria Bethânia e temos na coleção este encarte…

Assim como este programa nos conta um pouco sobre a história político-cultural de nosso país, os outros 239 documentos também têm muito a nos dizer. Se você quiser conhecer a coleção Cândido Figueiredo, segue o link do inventário:
Candido Figueiredo – Museu Histórico Nacional – Acervo Arquivístico (museus.gov.br)
¹Apud, Araújo, Maria Paula Nascimento. Programa do Show Opinião. In: Lenzi, Isabel et al. Histórias do Brasil em 100 Objetos, Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2022
Texto delicioso!!! Uma viagem no tempo e nos nossos afetos. Adorei. Parabéns à autora, a doce Bebel, e ao MHN que, mesmo em obras, segue presente em nossa vida cotidiana.