Skip links

A cultura LGBTQIAPN+ resiste no Largo do Arouche

Compartilhar

por Cauan da Silva Rabello

Nos dias 19 e 20 de setembro, deste ano de 2023, ocorreu o Seminário “Lugares de Memória LGBTQIAPN+”, no Museu do Ipiranga, em parceria com o Museu da Diversidade Sexual de São Paulo, o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP), o Departamento de Geografia (FFLCH-USP), o Centro de Preservação Cultural (CPC-USP) a Rede Paulista de Educação Patrimonial e a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), por meio do Exporvisões.

Esse evento compôs a programação da 17ª Primavera dos Museus, que teve como tema “Memórias e Democracia: pessoas LGBT+, indígenas e quilombolas”. Nessa edição, o Museu do Ipiranga e as instituições parceiras reuniram agentes sociais, pesquisadores da área, público LGBTQIAPN+ e apoiadores da causa. Assim, pudemos ouvir e debater acerca do patrimônio cultural e das políticas públicas voltadas para essa parcela da população que, por vezes, encontra-se à margem da sociedade.

Volto essa escrita para o percurso realizado por Helcio Beuclair, jornalista e ativista LGBTQIAPN+ que nos mostrou a região da República, mais especificamente em uma das praças do Largo do Arouche conhecida como Alto Arouche. Esse nome advém do fato da área ter sido afrancesada nos últimos anos, em uma tentativa de fazer com que a região central da cidade de São Paulo se pareça com a Europa. No Brasil, isso acontece desde a sua época colonial que, em 1816, inaugurou-se a Academia de Belas-Artes, que tinha como missão colonizadora ensinar a arte “verdadeira”, estabelecendo o ensino acadêmico aos moldes da França.

Esse processo de afrancesar o Largo do Arouche ocorre por meio de intervenções arquitetônicas e se inicia durante os últimos governos do PSBD: inicialmente o de João Doria, que idealizou o projeto e depois o de Bruno Covas, que o executou, gastando cerca de R$3,8 milhões.

Helcio nos conta que tampouco a comunidade LGBTQIAPN+, que ocupa historicamente aquele espaço, fora ouvida durante o processo de revitalização do espaço, afinal, uma simples reivindicação de que o banheiro público fosse reformado, não foi atendida, ao invés disso, o lugar foi destruído e muitas pessoas em situação de rua se veem obrigadas a urinar nos cantos da praça, fazendo-se presente um odor forte nesse espaço. Vale pontuar que a comunidade LGBTQIAPN+ nunca se opôs às revitalizações feitas no Largo do Arouche, apenas gostaria de ter sido incluída nesse processo, dado que sua memória se faz presente naquele local.

Durante esse percurso, algo que ficou muito nítido foram os diferentes modos de resistência da cultura LGBTQIAPN+ no espaço, destarte para as mulheres transexuais e travestis que trabalham no local que, durante o período de ditadura militar, resistiram diante das prisões arbitrárias, das batidas policiais, das violências físicas e verbais, isso sem falar das inúmeras agressões sexuais que a prostituição traz para a vida dessas mulheres.

Andando um pouco mais sobre o Alto do Arouche, Helcio nos conta que muitas pessoas LGBTQIAPN+ criam “relações” com as estátuas. Destaque para a obra de arte “Depois do Banho”, de Victor Brecheret, instalada em 1940 no Largo do Arouche, essa estátua compõe o plano de embelezamento ou afrancesamento de São Paulo, mencionado anteriormente.

Essa obra passou a assumir importância na vida da comunidade LGBTQIAPN+ que passa e/ou vive ali cotidianamente. Entretanto, o fato de as unhas da estátua serem pintadas com esmalte e, em dado momento, terem colocado um boné escrito “travesti” em sua cabeça nos leva a pensar o quanto que a obra de arte não representa aqueles que ocupam historicamente aquele espaço.

Obra “Depois do Banho”, de Victor Brecheret localizada no Largo do Arouche, no município de São Paulo. À esquerda, destaque para o boné colocado na estátua, com o termo “travesti” e, à direita, destaque para as unhas dos pés pintadas com esmalte. Fonte: demonumenta – FAUUSP

Além disso, Helcio nos contou que essas relações se constroem por meio do uso de substâncias psicoativas sobre ela, da imitação de sua pose para fotos, selfies e até mesmo desabafos direcionados à mulher de “Depois do Banho”.

Isso me relembrou o argumento de Marshall Sahlins, antropólogo estadunidense da década de 70, que se opôs ao “pessimismo sentimental” da época, isto é, à sensação de que a cultura se tornaria uma: a do colonizador imperialista. Sahlins, dizia que isso não se aplica, dado que as culturas resistem, apropriando-se da cultura do colonizador e transformando-a em algo novo, uma espécie de miscigenação entre a cultura nativa e a imposta.

Com isso em mente, quando pessoas da comunidade LGBTQIAPN+, ou seja, aquelas que historicamente ocupam o Largo do Arouche, passam a “interagir” com uma estátua italiana, pintar suas unhas, tirar fotos com ela, paramentá-la etc., tem-se um processo de resistência e reestruturação: o espaço não foi revitalizado com base nas reivindicações daqueles que lá estão há décadas, ainda assim, essa população o transforma à sua maneira, mesclando a cultura erudita e a LGBTQIAPN+.

Concluo essa escrita rememorando com muito carinho o percurso que fizemos no Largo do Arouche, por mais que sejamos obrigados a admitir o processo de afrancesamento da região, a cultura LGBTQIAPN+ não está morta, está em constante mudança e resistência em um espaço que historicamente a pertence. É necessário irmos à região da República e observarmos isso, saber quem sempre esteve ali e notar que, embora muitos dos espaços acabem não incluindo a população LGBTQIAPN+, eles são frequentados e apropriados por essas pessoas, tal que se mantêm pertencendo a esse lugar. Por fim, cabe repetir: a cultura LGBTQIAPN+ resiste no Largo do Arouche!

………………………………………………………………………………………………………………………………………………

Para saber mais:

https://www.instagram.com/museudadiversidadesexual/

https://www.instagram.com/helciobeuclair/

https://www.instagram.com/arouchianos/?img_index=3

https://www.arouchianos.com.br/territorio.html

https://www.gov.br/museus/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/primavera-dos-museus

https://helciobeuclair.wixsite.com/beuclairpelomundo/inicio

https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/05/24/prefeitura-quer-transformar-largo-do-arouche-em-boulevard-com-inspiracao-francesa.ghtml

http://demonumenta.fau.usp.br/depois-do-banho/

Comentário